Edição 270
A aquisição ou arrendamento de imóvel rural por pessoa jurídica com capital estrangeiro
2 de fevereiro de 2023
Antônio Augusto de Souza Coelho Presidente da Comissão de Direito Agrário da OAB-SP
A Lei no 5.709, de 1971, regula a aquisição de imóvel rural por estrangeiro residente no País, ou pessoa jurídica autorizada a funcionar no Brasil, cujo § 1o do art. 1o dispõe que ela se aplica à “pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas, que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no exterior”.
Com a promulgação da Constituição Federal (CF/1988), surgiu uma insegurança jurídica quanto à recepção do § 1o do art. 1o da Lei no 5.709/1971. O art. 190 da CF prevê a regulamentação por lei, “a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional”.
Em 1994, o Parecer GQ 22 da Advocacia Geral da União (AGU) sobre a questão foi conclusivo pela recepção da Lei no 5.709/1971, salvo o § 1o do art. 1o, por suposta incompatibilidade material com o art. 171, I, da CF/1988, que não admitia restrições à empresa brasileira, ainda que controlada por capital estrangeiro.
A Emenda Constitucional (EC) no 6/1995, revogou o art. 171 da CF/1988. A AGU reanalisou o tema, emitindo o Parecer GQ 181/1997, no qual sustentou que a revogação desse dispositivo constitucional, não teria o condão de repristinar o § 1o do art. 1o da Lei no 5.709/1971, uma vez que, pela teoria da recepção, quando normas anteriores à vigência de certa ordem constitucional conflitam materialmente com a ela, reputam-se revogadas, conforme dispõe a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Lei no 4.657/1942, art. 2o, § 3o: “§ 3o Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”.
Em 2010, a AGU emitiu o Parecer LA-01, entendendo que o §1o do art. 1o da Lei no 5.709/1971 foi recepcionado pela CF/1988. A pessoa jurídica brasileira, da qual participassem no capital social pessoas estrangeiras, físicas ou jurídicas, que residam ou tenham sede no exterior, submetem-se à referida lei, equiparando-se, desse modo, à pessoa jurídica estrangeira, autorizada a funcionar no Brasil.
Com base esse último parecer da AGU, aprovado pela Presidência da República, publicado no Diário Oficial da União de 28/8/2010, vinculativo às entidades integrantes da Administração Pública Federal, o Corregedor Nacional de Justiça, nos autos do Pedido de Providências no 002981-80.2010.02.00.0000, expediu recomendação para que os Cartórios de Registros de Imóveis e Tabeliães de Notas observassem as disposições da Lei no 5.709/1971, na lavratura de escrituras de aquisição de terras rurais por empresas brasileiras com participação majoritária de estrangeiros.
No Supremo Tribunal Federal, tramita a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no 342, ajuizada em 2015 pela Sociedade Rural Brasileira (SRB), com o objetivo de que se reconheça a incompatibilidade com a CF/1988 de dispositivos da Lei no 5.709/1971, que dão tratamento diferenciado a empresas nacionais de capital estrangeiro. A centenária entidade ruralista alega que a lei viola os preceitos fundamentais da livre iniciativa, do desenvolvimento nacional, da igualdade, de propriedade e de livre associação.
A SRB afirma que o § 1o do art. 1o da Lei no 5.709/1971 não foi recepcionado pela Constituição de 1988. Ao limitar as aquisições de terras por empresas nacionais com capital estrangeiro, a lei dificulta o financiamento do agronegócio, afetando a liquidez dos ativos imobiliários, com prejuízo para as empresas agrárias, “cujos valores poderão ser destinados para outros países, em detrimento do desenvolvimento nacional”.
Outro ponto alegado é o tratamento diferenciado restritivo a essas empresas, quando a Constituição “somente legitima a discriminação positiva” – como a criação de regime benéfico a empresas brasileiras de capital nacional por meio de tratamento mais favorável.
Não há no ordenamento jurídico constitucional nenhuma diferenciação entre empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional ou estrangeiro, e o art. 190 da CF/1988 somente se refere à aquisição e arrendamento de propriedade rural por empresas estrangeiras, e não por empresas brasileiras cujo capital não seja exclusivamente nacional. O art. 171 da CF/1988, que fazia tal distinção, foi revogado pela EC no 6/1995.
No Supremo Tribunal Federal, em 2016, o Ministro Marco Aurélio concedeu liminar na Ação Originária 2.463, para suspender os efeitos de parecer da Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo, no qual se dispensou os tabeliães e oficiais de registro do estado de observarem o art. 1o, § 1o, da Lei no 5.709/1971, que restringe a aquisição de imóveis rurais por pessoas jurídicas brasileiras cuja maioria do capital social pertença a estrangeiros. Decisão se deu em ação ajuizada pela União e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Determinou ainda, o seu apensamento à ADPF 342, para julgamento conjunto.
A Medida Provisória no 897/2019, também conhecida como MP do Agro, convertida na Lei no 13.986/2020 (Nova Lei do Agro), trouxe novidades para o agronegócio, para fomentar o crédito privado ao setor, por meio da criação de novos títulos de crédito e garantias mais robustas, tudo para conferir maior segurança ao credor, de modo a tornar o crédito mais acessível.
A Nova Lei do Agro promoveu importantes alterações nas leis no 5.709/1971 (Aquisição de Imóvel Rural por Estrangeiro) e no 6.634/1979 (Faixa de Fronteira), possibilitando a constituição de garantias reais (como, por exemplo, a alienação fiduciária), em favor de empresas estrangeiras ou empresas nacionais controladas por estrangeiros, incluindo a possibilidade de consolidação da propriedade do imóvel rural, uma vez percorrido o trâmite aplicável à excussão da garantia.
O financiador estrangeiro, que antes da promulgação da Nova Lei do Agro tinha acesso limitado à garantia hipotecária, passou a contar com a possibilidade de acessar a propriedade fiduciária do proprietário de imóvel rural. Assim, a tendência é que os financiamentos fiquem mais acessíveis, na medida em que o risco do credor é reduzido pelas vantagens dessa modalidade de garantia, especialmente por não estar exposto a eventual falência ou recuperação judicial (excetuadas hipóteses em que o imóvel objeto da garantia é considerado essencial para recuperação da empresa).
O Projeto de Lei (PL) no 2963/2019 facilita a compra, a posse e o arrendamento de propriedades rurais no Brasil por pessoas físicas ou empresas estrangeiras. Em análise na Câmara dos Deputados, o projeto dispensa a necessidade de autorização ou licença para aquisição e posse por estrangeiros, quando se tratar de imóveis rurais com áreas não superiores a 15 módulos fiscais (no Brasil, o valor do módulo fiscal é fixado pelo Incra e varia de cinco a 110 hectares, dependendo do município).
A soma das áreas rurais pertencentes e arrendadas a pessoas de outros países não poderá, no entanto, ultrapassar 25% da superfície dos municípios onde se situarem. No caso de sociedades formadas por cidadãos e empresas de mesma nacionalidade, esse percentual será mais rigoroso: 10%.
O texto, que já foi aprovado no Senado, atribui competência ao Congresso Nacional para autorizar, mediante decreto legislativo, a aquisição de imóvel por estrangeiros, além dos limites fixados em lei, quando se tratar da implantação de projetos julgados prioritários, em face dos planos de desenvolvimento do País, mediante manifestação prévia do Poder Executivo.
Os imóveis rurais adquiridos por sociedade estrangeira no Brasil também deverão obedecer aos princípios da função social da propriedade previstos na Constituição, como o aproveitamento racional e a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente.
A identificação do adquirente do imóvel será acompanhada, no caso de pessoa jurídica, de informações relativas à estrutura empresarial no Brasil e no exterior, declaradas sob pena de falsidade ideológica, conforme previsto no Código Penal.
O projeto altera a Lei no 5.868/1972, que cria o Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), para estabelecer que os cadastros serão informatizados e, ressalvadas as informações protegidas por sigilo fiscal, serão publicados na Internet, garantida a emissão gratuita de certidões das suas informações com autenticação digital.
O SNCR terá sua base de dados atualizada com as informações prestadas pelos contribuintes no Documento de Informação e Atualização Cadastral (DIAC), a que se refere a Lei no 9.393/1996, que dispõe sobre o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) e o pagamento da dívida representada por títulos da dívida agrária.
Conforme o projeto, um regulamento próprio deverá unificar o SNCR, criado pela Lei no 5.868/1972, e o previsto na Lei no 9.393/1996. A informatização e a gestão desse cadastro unificado deverão ter também uma plataforma única, integrada com a base de dados das juntas comerciais e demais órgãos que disponham de informações sobre a aquisição de direitos reais por estrangeiros ou por pessoas físicas ou jurídicas brasileiras constituídas ou controladas por pessoas privadas, físicas ou jurídicas estrangeiras.
De acordo com o Projeto, estarão sujeitas à aprovação do Conselho de Defesa Nacional (CDN) a aquisição de imóveis rurais ou de qualquer modalidade de posse quando as pessoas jurídicas forem organizações não governamentais, fundos soberanos, fundações e outras pessoas jurídicas com sede no exterior.
Também serão submetidas ao Conselho as pessoas jurídicas brasileiras constituídas ou controladas direta ou indiretamente por pessoas, físicas ou jurídicas, estrangeiras, quando o imóvel rural se situar no Bioma Amazônia e sujeitar-se a reserva legal igual ou superior a 80%.
As aquisições por estrangeiros de imóveis situados em área indispensável à Segurança Nacional também deverão obter o consentimento prévio do Conselho de Defesa Nacional.
Ficam vedados a estrangeiros: qualquer modalidade de posse por tempo indeterminado, arrendamento ou subarrendamento parcial ou total por tempo indeterminado e habilitação à concessão de florestas públicas destinadas à produção sustentável. Essa concessão, no entanto, é permitida para pessoa jurídica brasileira constituída ou controlada direta ou indiretamente por pessoa física ou jurídica estrangeira.Essas proibições não se aplicam quando a aquisição de imóvel rural se destinar à execução ou exploração de concessão, permissão ou autorização de serviço público, inclusive das atividades de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica ou de concessão ou autorização de bem público da União.
O texto modifica a Lei no 4.131/1962, que disciplina a aplicação do capital estrangeiro e as remessas de valores para o exterior. Conforme o projeto, os recursos financeiros ou monetários introduzidos no Brasil por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras, ou quando objeto de reinvestimento para a aplicação em atividades econômicas que envolvam a aquisição e o arrendamento de áreas rurais em território nacional, estarão sujeitos à legislação que regula a aquisição de imóveis rurais por pessoas estrangeiras.
Em síntese, de acordo com a legislação atual, poderá adquirir terras brasileiras: a) pessoas naturais (estrangeiros residentes no Brasil e cadastrados no Registro Nacional de Estrangeiros); b) pessoas jurídicas estrangeiras (com autorização para funcionar no Brasil) e c) pessoa jurídica brasileira constituída ou controlada por estrangeiros, respeitando a quantidade dos Módulos de Exploração Indefinida (MEI), que varia entre cinco e 100 hectares de acordo com região e município em que a propriedade está localizada.
Para pessoas naturais, a aquisição de área de até três MEI não requer autorização do Incra (exceto quando o imóvel estiver em faixa de fronteira ou se for uma segunda aquisição); acima de três MEI e até 20 MEI, é necessária a autorização do Incra; e acima, até no limite de 50 MEI, além da autorização do Incra será necessário apresentar um projeto de exploração da área.
Já para as pessoas jurídicas e brasileiras equiparadas, a aquisição de até 100 MEI requer autorização do Incra e apresentação de projeto de exploração da área. Acima de 100 MEI será necessária a apresentação de projeto de exploração da área e autorização do Congresso Nacional.
O PL revoga na totalidade a atual legislação vigente, e traz três alterações: a) a possibilidade de pessoas jurídicas brasileiras equiparadas (capital social controlado por estrangeiros) não sofrerem as restrições impostas às pessoas físicas e jurídicas estrangeiras; b) pessoas físicas e jurídicas estrangeiras poderão adquirir até 15 módulos fiscais, de forma livre, sem necessidade de autorização do Incra ou outro órgão público, retirando também a exigência de apresentação de projetos de exploração da terra; e c) convalida aquisições realizadas irregularmente durante a vigência da lei atual (art. 21 do PL no 2.963/2019).