A libertária Constituição do Chile

3 de outubro de 2022

Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

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A nova Constituição do Chile, rejeitada em plebiscito pela maioria do seu povo, com o apoio explícito dos humildes e das comunidades periféricas, reconhecidos como invisíveis, da perspectiva dos modelos constitucionais europeus, que evoluem de Sieyès e Constant, e dos países latinos, é um verdadeiro protótipo de proposta, da qual sobressai absoluta participação do Estado e a defesa dos direitos da pessoa humana. O seu próprio sumário é uma novidade criadora e, dificilmente, sobreviveria no conserto das nações, não estivesse mergulhada em ampla rejeição do resultado constituinte.

A Constituição do Chile tem uma vocação libertária, por meio da qual explicita a extensiva proteção do Estado aos direitos de seus povos, com destaque para a população indígena. A leitura cuidadosa dos seus 387 artigos demonstra que os seus 50 anos de gestação (desde 1973) foram suficientes para se articular as tantas e diferentes formas de se evitar, no tempo, a restauração repressiva que durou até 1990, estrangulada na mão do presidente Pinochet.

O texto constitucional, no seu conjunto, demonstra uma evidente proposta de se reestruturar os poderes de Estado, como proteção da pessoa humana, no contexto de uma política paritária de igualdade de gênero e etnias. Não se identifica evidência, no texto constitucional, de desarticulação do Poder Judiciário, mantendo uma proposta judiciária por instâncias, criando uma corte constitucional e transferindo para o Conselho de Justiça a atribuição de nomear os magistrados que administrariam a justiça. A composição legislativa assume um caráter abrangente, procurando envolver todos os povos, numa perspectiva, em que, concomitantemente, sobrevivem representações parlamentares sobrepostas, que, dificilmente, sintonizariam os interesses respectivos de todas as etnias e regiões.

Todavia, muitos foram os seus aspectos que acompanharam mudanças legislativas semelhantes a institutos da Constituição brasileira de 1988, como a criação de um sistema nacional de saúde e, principalmente, no que se refere às sugestões populares para a proposta de novas leis, sem que diferencie os interesses e competências dos grupos humanos constitutivos, com aberturas conflitivas visíveis. Não há como desconhecer que a Constituição, no seu conjunto, não explicita o exato papel na propriedade, como ocorre no mundo ocidental, mas reconhece que todos têm o direito de usufruir e defender o seu próprio bem, sem que venha a ser lesado. 

Ocorre, no entanto, que muitas foram as inovações que absolutamente fogem dos parâmetros constitucionais, que poderiam ser sérios fatores para impedir a governabilidade, como a criação de um Estado democrático, plurinacional, inclusivo e paritário entre as etnias originárias e composições de gêneros. Esta linha de organização poderia evoluir numa sucessão de conflitos com relação à validade das leis, diversamente da prática legal e costumeira. 

O conceito de liberdade substantiva, na Constituição, é uma reação à liberdade formal da tradição legislativa, mesmo no reconhecimento de sua necessária eficácia. Por outro lado, inovadoramente, em relação ao mundo, há a formatação da política de gênero em reação às redações constitucionais que dispôem sobre a convivência sexual. Por inovar absolutamente nesta proposição, poderia evoluir em linhas conflitivas, principalmente com a sua própria legislação civil interna, mas também perde em sintonia com as redações constitucionais de outros povos.

Afinal, o Chile não é o único país do mundo evoluindo nesta vertente. O mais conveniente seria evitar o desencontro coma as leis internas e, em tese, inferiores, porque ocasionariam grandes dificuldades de consertação jurídica, como aconteceu nas reformas constitucionais antecedentes. Sendo assim, há que se reconhecer, dentre tantas dificuldades, a inclinação constitucional para privilegiar os direitos da natureza, exatamente com este nome exponencial e muito importante, mas principalmente esta Constituição revoga todas as leis chilenas que privatizavam o uso dos rios, devolvendo a água ao seu próprio povo.

Finalmente, neste contexto, visto da perspectiva das constituições ocidentais, mesmo aquelas que se antepuseram aos regimes autoritários, a Constituição do Estado Social e Democrático de Direito do Chile encontraria resistências na convivência internacional.