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Ucrânia: a fronteira da fronteira Eurasiana

19 de maio de 2014

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Aurelio Wander BastoslierEm Borderland: a journey through the history of Ukraine, a jornalista Anna Reid conta que dentre as hordas cossacas que outrora ocuparam a Ucrânia as mais selvagens habitavam a ilha de Zaporozhian Sich, no rio Dnieper. Esses grupos fortemente armados reuniam-se na Rada (atual denominação do Parlamento da Ucrânia), uma assembléia popular onde todos tinham direito de voz e as decisões eram tomadas por aclamação. Sem uma liderança política formalmente constituída os cossacos de Sich viviam em bandos de aproximadamente 100 guerreiros denominados Sotnias, cada qual liderado por um Sotni.

Em 1648, Khmelnitsky, um desses Sotnis, comandou o levante contra os poloneses, considerado o primeiro movimento independentista da Ucrânia. Reid assevera que a derrocada cossaca, entre os séculos XVII e XVIII, não os alijou do imaginário ucraniano. Ao contrário! Vistos como guerreiros nacionalistas, violentos, de hábitos simples eles são as referências dos atuais rebeldes ucranianos. Para Reid, os cossacos estão para o inconsciente popular da Ucrânia ou, nas dimensões históricas de cada povo, observando como na Vianna Neoog, os bandeirantes e pioneiros estão para a expansão e conquista territorial do Brasil.

Até bem pouco tempo ausente do interesse brasileiro, a Ucrânia é hoje parte de nosso debate midático. Mas que país é esse? Com 603.628 Km2 e aproximadamente 45 milhões de habitantes, a Ucrânia está situada entre Rússia; Bielorrúsia; Polônia, que dominam o seu norte/nordeste; Austria; Eslováquia; Hungria; Bulgária; Romênia e Moldávia, pelo sudoeste; e, no leste remoto, a Alemanha.  Aberta a sul e a sudeste para o Mar de Azov e para as águas quentes do Mar Negro, está em sua maior dimensão situada na Europa, mas sobre ela desponta o leste russo, base de origem e formação de seu povo, língua e religião.

A importância geopolítica da Ucrânia para a Europa é ressaltada pela alta fertilidade de suas terras (que motivou o Lebenshaum nazista), forte potencial nuclear (energético e militar), elevada capacidade científica e tecnológica (mantendo inclusive uma parceria espacial com o Brasil). Este país tem uma grande malha gasífera, em cujos gasodutos vão da Rússia para o sul europeu, sendo ela própria dependente deste gás (60%) Europeu. Sua capital, Kiev, está localizada no centro-norte do país, onde vivem, especialmente, ucranianos étnicos, russos, bielorrussos e romenos, há apenas 100 kilômetros de onde ocorreu o desastre de Chernobil.

A geopolítica ucraniana é um dos pilares de sua relevância histórica; todavia, a base do seu drama atual, como o fora no passado recente, com reflexos no seu atual quadro político. Isso ocorre tanto em função da antiga influência da Rússia, país que cobre toda região norte e o entorno nordeste da Ucrânia, quanto pelo cerco político e econômico que impede que o seu próprio oeste, de religião russo-ortodoxa, domine as riquezas comerciais e marítimas que transpassam o Mar Mediterrâneo e, cruzando os estreitos de Bósforo e Dardanelos, espraiam-se para o sul da Europa e para as conexões árabes e africanas. Assim, cumpre sublinhar desde já que o “mundo das riquezas” (econômicas e estratégicas) da Ucrânia não está no oeste pró-europeu, mas no leste, onde estão os olhos, as ambições e a dependência européia, em particular na península da Crimeia, entregue aos ucranianos como reservatório de riquezas.

Este território foi destinado em 1954 pelo dirigente soviético ucraniano (como o fora também Liev Trotsky), Nikita Khrushchov, que recentemente retornou a integrar o território russo com plebiscito em votação quase unânime. Por isso, em sua própria formação política, econômica e social a Ucrânia é um país cindido entre o (seu) oeste, mais pobre e de maioria étnica ucraniana, mais suscetível à influência européia, e o leste, mais próspero, de maioria étnica russa, como não poderia deixar de ser, suscetível à influência Russa, inclusive de suas remanescentes tradições soviéticas. Este é o dilema ucraniano: o que interessa a Europa é o seu oeste de influência russa, o que interessa à Ucrânia é a Europa alemã, mas o que interessa à Rússia é o mesmo que à Europa (o oeste ucraniano). Este é o foco da crise e, também, o risco separatista, pois o seu leste já fora o celeiro europeu do trigo e do milho, e não o é necessariamente da Rússia.

Todavia, a complexa estrutura geopolítica ucraniana desautoriza qualquer interpretação intempestiva sobre a crise do país, dividido entre o mercado comum europeu, que se abastece com o gás e o petróleo de domínio russo e do seu próprio celeiro agrícola e a “nova” Eurásia, de onde vem as suas próprias condições de sobrevivência. Por isto mesmo, mas dominada pela liderança histórica, alguns analistas tem caracterizado lideranças rebeldes pró-Europa provisoriamente no poder como de influência neonazistas e os governistas como membros do aparato oligárquico pró-Rússia (oprichnick), em tese neocomunistas. É certo que tais grupos estão presentes no cernário político ucraniano, mas o reducionismo não ajuda a compreender a luta nacional em curso. Então, por onde começar?

As motivações da crise na Ucrânia vêm por certo de fora. Se assim não fosse o levante social, teria iniciado nos anos de 1990, como ocorreu na Yugoslávia e na Tchecoslováquia, mas não se pode desprezar a sua volumosa dívida, cujos socorros vem sucessivamente da Rússia. Assim, cumpre asseverar que o conflito provém do Ocidente, fomentado por Bruxelas e Washington, que procuram atrelar a Ucrânia ao Eurogovernment. Mas, por outro lado, não se pode esquecer de suas diferenças endógenas e, também, dos velhos ideais europeus da jovem Ucrânia, principalmente que a jovem nação sobreviveu cindida durante a 2a Guerra dominada pelo Governo Geral Alemão (até sua incorporação pela URSS após a guerra).

Essa dissensão entre as expectativas européias e do oeste ucraniano, cujo indicador recente foi a suspensão pelo antigo PresidenteYanukovitch (eleito em 2010 com 50% dos votos) das negociações que levaram a uma aproximação com a União Européia, não apenas pode empurrar a Ucrânia para uma guerra civil, com riscos de intervenção internacional, como também para o separatismo, sobrevivendo a (seu) oeste uma pequena Ucrânia, e a leste um amplo protetorado russo. Os interesses do bloco ocidental são nítidos neste conflito. Bruxelas busca expandir sua influência captando no leste mercados e fatores de produção (mão-de-obra barata e qualificada, matérias primas, etc.) necessários para a retomada econômica europeia. Os EUA (sem prejuízo das questões econômicas) procuram atrair a Ucrânia para a OTAN, o que lhes permitiria fixar bases militares na fronteira com a Rússia (necessárias para a futura desestabilização russa), como já vem ocorrendo nos países do Báltico e na Polônia.

Neste contexto, sem que atue diretamente na Ucrânia (como fez no Iraque e no Afeganistão) os EUA agem através de sua principal agência de inteligência, a CIA, e por meio de ONGs que procuram alimentar o sentimento anti-Moscou no oeste do país onde está visível a influência Russa entre os “milicianos”.  Os EUA tem evitado qualquer posição interventiva direta e, como um enxadrista experiente, deixa a arrumação do conflito para os “peões” da Europa, muito especialmente a Alemanha, que no passado sonhou com a Ucrânia do governo geral (alemão). Por outro lado, a Rússia evita o conflito direto, mas conta com o adesismo da população ao projeto anexeonista, com forte expectativa de crimeialização do leste ucraniano. Não se deve esquecer, todavia, que a Criméia depende (70%) da energia elétrica ucraniana, o que aumenta os laços de interdependência interna.

Os rebeldes da Ucrânia, genericamente abrigados sob a identidade Euromaidan, eles são predominantemente ucranianos étnicos que hoje se organizam sobre bases independentistas e populares, pretensamente imunes aos interesses das elites. Seus confrontos com as tropas leais ao presidente deposto Víktor Yanukóvytch deixaram um rastro de ódio e morte na Praça da Independência, em Kiev, e permitiram o assalto ao poder na forma do clássico coup de main, de Mussoline. Ultranacionalistas, eles refutam as velhas estruturas organizacionais do Exército Vermelho, tido como imperialista, e dos movimentos nacionalistas da primeira metade do século XX, muitos dos quais lutaram alternadamente ao lado de nazistas e soviéticos. Em busca de referências, eles se voltam para o Rus de Kiev e para as sotnias cossacas, antigas estruturas organizacionais dessa etnia mítica da Ucrânia e, paradoxalmente, da própria Rússia.

Considerando que os partidários de Yanukóvytch, em grande parte de origem russa, desejam estreitar laços com Moscou, está configurado o impasse. Qual a solução, sabendo-se que Yanukóvytch buscou guarida exatamente na fronteira leste (Karkiv). Num país polarizado, o caminho mais evidente é a secessão, lastreada no princípio da autodeterminação dos povos, cuja evidência está na declaração do Parlamento da Criméia que deliberou pela anexação da região à Federação Russa, ato legitimado por um referendo popular (como observamos) e acatado por Moscou. Todavia, nada é tão simples. O retorno da Crimeia à Rússia possui vários obstáculos. Em nível externo, além de EUA e Europa, a ONU condenou a secessão por meio de uma resolução aprovada no final de março por 100 votos a favor, 11 contra e 58 abstenções, dentre as quais o Brasil.  No âmbito interno a Rada também rejeitou a separação. Agora, o governo provisório busca reconstruir o tecido político atraindo oligarcas da economia como Sergei Taruta (empresário da mineração e fundição) para sua esfera de influência.

Nesse contexto, a alternativa da sobrevivência da Crimeia, província autônoma, regida desde 1999 por uma Constituição própria, como continuidade territorial, poderia influir sobre todo o cenário Ucraniano como vem ocorrendo com a Transnístria na Moldávia, área de grande disputa territorial durante a 2a Guerra, juntamente com a Bucovinia, no Sudoeste da Ucrânia, que tem seu próprio Estado desde 1992, onde também se destaca a República Popular de Donetsk, sendo que sua população considera ilegítimo (74%) o governo provisório presidido por O. Turchinov e a cidade de Druzhkivka, e tantas outras na fronteira Russa. Fato é, todavia, que a Ucrânia sem a Crimeia é pouco significativa no concerto das nações e a sua própria sobrevivência fica limitada. Por outro lado, ocorre, todavia, que, também, a Rússia precisa da “sua” Criméia como porto de abertura para Mediterrâneo, que mais representa nas suas ligações ocidentais que o seu próprio oeste, nas fronteiras bálticas e com a Polônia.

Nesse arranjo, no qual os interesses euroamericanos e russos estão com incógnitas armas, lutando visivelmente desequilibrados, a Ucrânia deixaria de ser um estado unitário para formar uma federação descentralizada ou mesmo uma confederação de Estados, para não se aventar no curto prazo a uma hipotética anexação à Federação Russa, pelo menos o seu leste, o que viabilizaria uma desinteressante Ucrânia oeste europeia. De toda sorte, a solução não virá (apenas) do povo ucraniano, mas das diversas etnias ucranianas com suas opções de interesse. Em que pesem os “novos cossacos”, ela será determinada pelo triângulo imperfeito formado por Washington, Bruxelas e Moscou. É neste ambiente político imperfeito que a Rússia, União Européia, Estados Unidos da América e Ucrânia procuram se reunir para encontrar uma saída para a crise, possivelmente às luzes do acordo de Genebra.

Finalmente, no quadro desta perspectiva, cumpre destacar que, na esteira de outros tantos conflitos pelo mundo, muito especialmente no leste mediterrâneo, a crise na Ucrânia revela que os tempos de relativa harmonia entre EUA e Rússia parecem estar chegando ao fim. Paira no ar uma “nova guerra fria”, ou pode-se antever, como falava Carl Schimitt, uma nova “guerra quente”. Alea jacta est!,