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A sentença do Tribunal Marítimo e sua eficácia perante o Poder Judiciário

20 de julho de 2016

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Ao considerar o Tribunal Marítimo (TM) como órgão auxiliar do Poder Judiciário, não pretendeu o legislador submeter a Corte Marítima à posição de subserviência a qualquer dos Poderes da República.

O Tribunal Marítimo exerce função fundamental na resolução de lides marítimas, e o fato de suas decisões poderem ser revistas pelo Judiciário tem levado o leitor incauto a supor uma posição de subordinação que, a toda evidência, inexiste.

Com efeito, o Tribunal Marítimo, de forma exclusiva e soberana, declara a natureza e a extensão dos acidentes ou fatos da navegação, fixando as causas determinantes e os responsáveis, com aplicação de penalidades. Além disso, os acórdãos da Corte Marítima podem prescrever medida preventiva e de segurança.

Aqui já se vê uma peculiaridade marcante deste Tribunal Especializado: o Tribunal Marítimo atua como fonte altamente especializada de conhecimento técnico; suas decisões profiláticas dão o substrato para as políticas públicas de incremento e aprimoramento das atividades da Marinha Mercante doméstica.

Note-se que os órgãos do Poder Judiciário tem a missão precípua de dirimir conflitos de interesse, mas não tem o papel preventivo desempenhado pelo TM. As decisões administrativas do Tribunal Marítimo podem ter amplo alcance, a ponto de proteger a navegação comercial brasileira. Ao decidir sobre uma colisão de navio, por exemplo, pode a Corte gerar uma alteração da sinalização náutica no local do acidente.

O prestígio do TM, diante das autoridades constituídas, decorre muito mais do conteúdo substancioso de seus acórdãos, do que da sua própria estrutura organizacional dentro do contexto jurisdicional brasileiro – já que o legislador não lhe atribuiu a mesma independência outorgada aos demais tribunais.

O Judiciário, a teor do art. 18 da Lei 2.180/54, pode reexaminar as decisões do Tribunal Marítimo, inobstante este observar o princípio do due process of law. Mas isto ocorre por força do princípio constitucional da inafastabilidade de apreciação do Poder Judiciário, e do princípio do livre convencimento do magistrado.

O que se deve ter em mente é que o Judiciário pode reapreciar a decisão do TM, e até mesmo rejeitá-la – obviamente, nesta segunda hipótese, desde que de forma fundamentada – mas jamais poderá prescindir do acórdão marítimo para o seu próprio julgamento, segundo a própria Lei 2.180/54.

Não comungo, na totalidade, com aqueles que afirmam que o Judiciário só pode revê-la nos aspecto da legalidade, e jamais no mérito. Esse entendimento não se coaduna com o disposto no citado artigo 18 da lei de regência, nem com a regra constitucional do art. 5o, XXXV, da Carta Magna. Todavia, ao adentrar no mérito do julgamento da Corte Marítima, o Judiciário tem o dever de fundamentar, ponto a ponto, os aspectos técnicos discordantes, e para tanto deve se valer de rigorosa prova técnica conclusiva. A simples argumentação do julgador, por si só, sem a produção de uma contraprova técnica, é insuficiente para desconstituir a decisão técnica no TM. Em outras palavras, se nenhuma prova relevante for produzida no juízo cível, só resta a este decidir em conformidade com a decisão do TM.

As decisões do TM quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas. Mas essa presunção é iuris tantum, vale dizer, é uma presunção relativa, que pode ser ilidida pela prova em contrário – prova esta que deve ser, como dito acima, altamente rica em tecnicidade.

Assim, a atividade jurisdicional de revisão da decisão técnica do TM é excepcional, e somente ocorre quando a parte interessada apresentar razões relevantes e convincentes para que a matéria seja reapreciada (até porque existe uma presunção, ainda que relativa). Portanto, exige-se cautela e prudência do magistrado quando este, na instrução judicial, abrir a possibilidade de rediscussão meritória da decisão do TM, até porque não se desconhece o prestígio de que gozam as decisões deste, cujo pronunciamento é tido, hodiernamente, como de natureza quase-jurisdicional. A coisa julgada administrativa pode influenciar, sim, o convencimento do Estado-Juiz.

Por fim, outra cautela é exigível do julgador: após se convencer, de forma fundamentada, da necessidade de adentrar no mérito da decisão da Corte Marítima, notadamente nos aspectos técnicos do julgamento, o juiz deve nomear técnicos especializados – de preferência peritos navais qualificados. Isto porque uma prova altamente especializada só pode ser refutada por outra prova de igual ou superior tecnicidade.

Abro rápido parêntesis para abordar questão não menos importante: o prazo de suspensão. É sabido que o juiz togado deve suspender o processo judicial para aguardar a juntada da decisão definitiva do TM, consoante a regra do art. 19 da lei. Mas o tempo de suspensão do processo, por não ter sido fixado pelo legislador, tornou-se discutível. Penso que a melhor solução está na adoção da regra de suspensão prevista no CPC, aliada ao princípio da razoabilidade. Vale dizer, suspende-se por um ano, prorrogável por igual período, para que a Corte Especializada finalize o processo marítimo e remeta-o ao julgador togado, como peça de valor probante iuris tantum para a formação do convencimento judicante.

A matéria foi abordada em acórdão objetivo e elucidativo, transcrito da rica obra de Matusalém Pimenta (Processo Marítimo, pg 108/112): “As decisões do TM podem ser revistas pelo Judiciário; quando fundadas em perícia técnica, todavia, elas só não subsistirão se esta for cabalmente contrariada pela prova judicial” (REsp 38082/PR).

O citado mestre maritimista nos relembra que “o reexame não diminui nem torna apoucada a decisão do colegiado do mar, eis que é garantia constitucional, no âmbito intangível da Carta Política. Entretanto, aquele que quiser modificar uma decisão do TM, na esfera do Judiciário, terá a herculana tarefa de ilidir prova robusta, vez que produzida perante tribunal especializado” (ob. cit. pg. 110).

Portanto, a sentença do Tribunal Marítimo, ao fazer coisa julgada administrativa, gera presunção iuris tantum de certeza quanto aos fatos e acidentes da navegação. E o Poder Judiciário, quando provocado a decidir acerca dos mesmos fatos e acidentes, deve ter cautela e prudência ao reapreciar a decisão da Corte Marítima, já que o decisum desta só excepcionalmente deve ser desconsiderado, notadamente frente a uma robusta prova judicial contrária.