Edição 127
Abuso do Direito
28 de fevereiro de 2011
Marco Aurélio Bezerra de Melo Desembargador TJERJ
I – A aparente logomaquia do instituto
A expressão “abuso do direito” é a mais correta sob o ponto de vista técnico. Isso porque se evita a desnecessária e clássica crítica doutrinária trazida por Planiol, para quem não se pode abusar de um direito, pois na medida em que o direito vira abuso deixa de ser direito, e aí teríamos uma insuperável disputa entre os próprios vocábulos. Na verdade, quando o sujeito abusa do direito a ele deferido pelo ordenamento jurídico, não se nega a eventual existência do direito subjetivo de crédito, de propriedade ou potestativo de resilir unilateralmente determinado contrato, mas apenas afirma-se que o exercício do direito deve se coadunar com as regras e os princípios tidos como fundamentais pela Constituição da República e pela sociedade contemporânea, tais como a boa-fé objetiva, a solidariedade, a socialidade, o respeito à dignidade humana, dentre outros. O direito é reconhecido e tutelado. O exercício abusivo é que acaba por configurar a ilicitude. Por tal motivo, não há contradição entre as palavras “abuso” e “direito”.
II – A teoria dos atos emulativos
A origem do abuso do direito está vinculada à teoria dos atos emulativos. De efeito, quer tenha a aemulatio surgido no direito romano, quer tenha conhecido aplicação no direito medieval, o fato é que há muito se repudia o comportamento daquele que se serve de um direito apenas para prejudicar outrem, sendo no (mau) exercício do direito de vizinhança que o ato emulativo mostra-se bem claro, sendo o caso Bayard (França, 1913) um importante demonstrativo de como um titular de direito tem possibilidade de prejudicar outrem. Sucedeu que um vizinho de um hangar de dirigíveis resolveu levantar em terreno de sua propriedade muro divisório muito alto, fora dos padrões da localidade, com pontas de metal extremamente afiadas e com aptidão para estourar os dirigíveis, atrapalhando, com isso, a atividade legítima exercida pelo proprietário do prédio vizinho. A corte francesa reconheceu o abuso do direito, determinando a demolição do muro, e, com isso, a história do direito deu importante passo para a sedimentação da teoria do abuso do direito e também do reconhecimento da função social da propriedade.
Assim, valer-se de um crédito para ridicularizar o adversário político em uma pequena cidade do interior, exercer o poder familiar sobre um filho que ficara órfão de pai e, com isso, impedir a visitação dos avós paternos (art. 98, II, da Lei nº 8.069/90), construir um muro alto para fazer sombra na piscina do vizinho (art. 1.228, § 2º, in fine, CCB), assediar moral ou sexualmente o trabalhador no serviço público ou privado, humilhar o consumidor na cobrança de dívida (art. 42 da Lei nº 8.078/90), instabilizar relação negocial alheia a fim de levar um dos concorrentes à bancarrota, valer-se de servidão predial de passagem para prejudicar o dono do prédio serviente (art. 1.385, CCB), constituir pessoa jurídica transferindo para ela patrimônio apenas para prejudicar os credores (art. 50, CCB), aliciar prestador de serviço alheio (art. 608, CCB), dentre outras práticas social e moralmente reprováveis, são manifestações loquazes de abuso do direito.
III – As teorias do abuso do direito
O abuso do direito comporta a análise das teorias subjetiva (ou teoria dos atos emulativos) e objetiva. Para a primeira, somente haverá abuso do direito quando houver o exercício do direito voltado para lesar outrem. Para a teoria objetiva, o abuso do direito configura-se sempre que o exercício do direito se divorcia da função social para o qual foi criado, desatendendo o conteúdo finalístico do ordenamento jurídico centrado na Constituição da República, assim como nos ditames da boa-fé objetiva. Se houver compatibilidade entre a função social do direito e o seu exercício, estaremos diante do exercício regular do direito (art. 188, I, in fine, CCB). Caso contrário, o titular cometerá o ilícito funcional do abuso do direito.
IV – A superação da concepção subjetiva do abuso do direito
Realmente, parece que o Código de Proteção e Defesa do Consumidor e, posteriormente, o Código Civil atual trouxeram a definitiva superação da teoria do ato emulativo que já se verificara, por exemplo, por ocasião da entrada em vigor do artigo 334 do Código Civil português em 1966: “art. 334 (Abuso do direito) – É ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito.” Com efeito, o artigo 187 do Código Civil brasileiro guarda o mesmo conteúdo ideológico ao dispor que “também comete ato ilícito o titular do direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
No Código de Proteção e Defesa do Consumidor também se observa, mediante a simples leitura dos artigos 6º, IV, 37, § 2º, 39 e 42, que a figura do abuso do direito não se encontra revestida dos elementos subjetivos da intencionalidade do fornecedor ou de sua culpa.
Conquanto tenhamos por correta a perspectiva objetiva do abuso do direito consagrada na súmula 127 do egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (Súmula 127 – “para a configuração do abuso do direito é dispensável a prova da culpa”) e também no enunciado nº 37 do Conselho da Justiça Federal (STJ), aprovado na I Jornada de Direito Civil, sob a presidência do eminente ministro Ruy Rosado de Aguiar Junior (En. 37 – “Art. 187. A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.”), forçoso reconhecer que pode existir comportamento abusivo em que o agente tenha o deliberado propósito de prejudicar alguém (ato emulativo) ou que, por inobservar o dever de cuidado com o outro, acabou por exercer seu direito de modo irregular.
Enfim, para que haja abuso do direito, não há necessidade de culpa ou dolo do lesante, mas tal elemento subjetivo pode existir, acarretando efeitos jurídicos importantes e, eventualmente, até mesmo a compensação por dano moral. Eloquente exemplo do que se está querendo dizer pode ser encontrado no abuso do direito de propriedade previsto no parágrafo segundo do artigo 1.228 do Código Civil brasileiro: “São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.” Fácil perceber que a primeira parte do referido dispositivo legal consagra a teoria objetiva e, a segunda, o ato emulativo. A melhor interpretação é a de que a propriedade é protegida pela ordem jurídica em atenção à relevante função social do instituto. Destarte, o exercício da propriedade que não traga utilidade ou comodidade para seu titular reputar-se-á abusivo. Se houver a “intenção” de prejudicar, a conduta será ainda mais reprovável, podendo acarretar outros efeitos jurídicos.
No trânsito jurídico prevalece a mesma ideia acima, ou seja, imagine-se que um contratante, ocupando o polo ativo da relação obrigacional, tenha abusado de sua posição jurídica creditícia privilegiada e, afastando-se do paradigma da boa-fé objetiva, fique modificando sistematicamente o lugar do pagamento (arts. 327 e 330, CCB), deixando, portanto, de colaborar com o adimplemento. Haverá abuso do direito independentemente de haver intenção do credor de prejudicar o devedor. Relevante, nesse caso, será considerar o distanciamento do credor da finalidade social do direito obrigacional que é o adimplemento.
V – Pressupostos, natureza jurídica e efeitos jurídicos do abuso do direito
O abuso do direito exige para a sua configuração a existência de um direito que é exercido em desconformidade com a finalidade social para o qual o instituto foi criado e tutelado pelo ordenamento jurídico. Esse comportamento irregular acaba por acarretar um prejuízo para alguém ou para a coletividade, como ocorre, por exemplo, na publicidade abusiva.
A natureza jurídica conferida pela melhor doutrina e pela lei é a de ato ilícito (art. 187, CCB), diferentemente de sua manifestação clássica (arts. 186 e 927, caput, CCB), mas sim um tipo especial de ilícito que pode ser chamado de ilícito funcional. Isto é, trata-se do descumprimento de um dever jurídico preexistente exigido pela função social do direito ou pela boa-fé objetiva entre as pessoas envolvidas.
O efeito jurídico do abuso do direito dependerá da consequência da violação da finalidade social do direito perante a vítima. O comportamento abusivo do titular do direito pode ensejar para o lesado, por exemplo, uma pretensão de desfazimento de obra, retorno do empregado, retirada de circulação da publicidade abusiva, manutenção do vínculo contratual, repetição do indébito em dobro, condenação nas sanções da litigância de má-fé, nulidade do contrato, nulidade de cláusula, assim como, à toda evidência, indenização pelo dano material e/ou moral.
VI – Precedentes jurisprudenciais
I – Abuso da posição jurídica do credor inviabilizando a utilização de serviço público essencial e expondo-o à humilhação.
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. EXPOSIÇÃO DO NOME DE CONDÔMINO DEVEDOR EM ÁREA COMUM DO EDIFÍCIO. PROVA TESTEMUNHAL INDICANDO A PRÁTICA VEXATÓRIA. CORTE DO FORNECIMENTO DE GÁS. ATITUDE ARBITRÁRIA. DANO MORAL CARACTERIZADO. INDENIZAÇÃO DEVIDA. Ainda que inaplicável o Código de Defesa do Consumidor à relação existente entre condomínio e condômino, não fica desautorizada a pretensão deste de obter indenização pelos danos morais sofridos em razão da exposição pública do seu nome no rol de inadimplentes do prédio, pleito amparado pela Constituição Federal. Aqui, outrossim, houve arbitrário desligamento do gás do seu apartamento, abuso de direito visando compeli-lo ao pagamento da obrigação em atraso. (TJSC, 1ª Cam., Ap. Cível, nº 2003.018728–6, Des. Rel. Maria do Rocio Luz Santa Ritta, julgado em 08/08/06).
II – Abuso da posição jurídica da incorporadora por ocasião da confecção da convenção de condomínio.
0425274-15.2008.8.19.0001 – APELAÇÃO
DES. JACQUELINE MONTENEGRO – Julgamento: 09/11/2010 – DÉCIMA QUINTA CÂMARA CÍVELCONVENÇÃO CONDOMINIAL
NULIDADE DE CLÁUSULA
INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA
OUTORGA DE ESCRITURA DE CONVENÇÃO
ADESÃO COMPULSÓRIA
ABUSO DE DIREITO
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO VISANDO DECLARAÇÃO DE NULIDADE DE CLÁUSULA CONSTANTE EM CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO. ALEGAÇÃO DE AFRONTA AO CÓDIGO CIVIL. HIPÓTESE DOS AUTOS EM QUE NÃO SE IMPÕE A INCLUSÃO DOS DEMAIS CONDÔMINOS NO POLO PASSIVO. DISPENSÁVEL A FORMAÇÃO DE LISTISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO. REJEIÇÃO DA ALEGAÇÃO DE DECADÊNCIA, EIS QUE É INSTITUTO QUE NÃO SE APLICA QUANDO ENVOLVE ANULABILIDADE DE NEGÓCIO JURÍDICO. CONVENÇÃO CONDOMINIAL OUTORGADA PELA CONSTRUTORA ANTES DA INSTALAÇÃO DO PRÉDIO, QUANDO DETINHA 99% DAS UNIDADES AUTÔNOMAS. SITUAÇÃO DE ADESÃO COMPULSÓRIA DOS CONDÔMINOS À CONVENÇÃO. CLÁUSULA CONVENCIONAL IMPUGNADA QUE REPRESENTOU PRIVILÉGIO EM FAVOR DA INCORPORADORA. ÔNUS EXCESSIVO E DESPROPORCIONAL IMPOSTO AOS FUTUROS ADQUIRENTES. CIRCUNSTÂNCIA QUE, À LUZ DAS NORMAS INSERIDAS NO CÓDIGO DO CONSUMIDOR CARACTERIZA ABUSO DE DIREITO. CLÁUSULA COM VÍCIO INSANÁVEL DE ORIGEM, QUE IMPÕE A SUA ANULAÇÃO. DESPROVIMENTO DO RECURSO.
III – Proibição do patrão para que ex-empregado ingresse em local na sede da empresa destinado ao público.
0014836-63.2006.8.19.0001 – APELAÇÃO
DES. CARLOS SANTOS DE OLIVEIRA – Julgamento: 24/08/2010 – NONA CÂMARA CÍVELEX-EMPREGADO
INGRESSO NO RECINTO DE TRABALHO
PROIBIÇÃO
ABUSO DE DIREITO
REDUÇÃO DO DANO MORAL
PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADEAÇÃO INDENIZATÓRIA. PROIBIÇÃO DE INGRESSO NO ESTABELECIMENTO. AUTORA QUE É EX-FUNCIONÁRIA DA RÉ. PROVA DE CONDUTA DISCRIMINATÓRIA DA PARTE RÉ. ABUSO DE DIREITO. DANO MORAL CONFIGURADO. REDUÇÃO DO VALOR COMPENSATÓRIO. PEDIDO DE RESTITUIÇÃO DE VALORES DESPENDIDOS COM A CONTRATAÇÃO DE ADVOGADO QUE NÃO MERECE ACOLHIMENTO, ANTE A NÃO COMPROVAÇÃO DO PAGAMENTO DESTA DESPESA PELA PARTE AUTORA. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA CARACTERIZADA. Se extrai do conjunto probatório a existência de um abalo psicológico para o autor a justificar o acolhimento do pedido de indenização por dano moral, apta a configurar lesão a direito da personalidade. A autora comprovou os fatos narrados na inicial no sentido do impedimento de ingresso em local aberto ao público no estabelecimento da ré. A parte ré não provou a afirmação de que a autora pretendia ingressar em área restrita a funcionários. Redução da indenização por dano moral para o importe de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) tendo em vista os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da vedação ao enriquecimento sem causa. PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO DA RÉ E DESPROVIMENTO DO RECURSO DA AUTORA.
IV – Representação contra advogado arquivada contendo expressões ofensivas e caluniosas.
0079311-91.2007.8.19.0001 (2009.001.45542) – APELAÇÃO
DES. MARCO ANTONIO IBRAHIM – Julgamento: 02/06/2010 – VIGÉSIMA CÂMARA CÍVELREPRESENTAÇÃO CONTRA ADVOGADO
EXCESSO DE LINGUAGEM
OFENSA À HONRA
ABUSO DE DIREITO
OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR
Civil. Responsabilidade civil. Abuso de direito. Reclamação apresentada perante a Ordem dos Advogados do Brasil que veio vazada em termos ofensivos e caluniosos contra o advogado representado. Processo arquivado. Dano à honra. Incidência do disposto no artigo 187 do Código Civil. Abuso de direito do qual deriva o dever de indenizar, independentemente de culpa. Excesso de linguagem. Artigo 927 do Código Civil. Enunciado nº 37 do CEJ – Centro de Estudos Jurídicos do Conselho da Justiça Federal. Provimento do recurso. Vencida a Des. Teresa de Castro Neves.
V – Abuso da posição contratual do locador de veículo automotor destinado para o serviço de táxi frente ao motorista auxiliar locatário
5ª Câmara Cível
Apelação Cível nº. 0055605-45.2008.8.19.0001
Relator: Des. Cristina Tereza Gaulia
Ementa: Apelação cível. Ação indenizatória. Contrato de locação de veículo táxi. Motorista auxiliar. Réus que são o proprietário do veículo e a permissionária do taxi locado. Jornada de 6h00 às 18h00. Rescisão unilateral por parte do locador sob alegação de “descumprimento contratual” do locatário.Devolução do valor pago a título de garantia pelo locatário, descontado o valor de multas sofridas pelo veículo nos dias e horários em que o automóvel estava sob sua guarda. Depósito de parte do valor da garantia, já descontadas as multas de trânsito, realizado pelos réus. Pagamento efetuado dentro do prazo previsto no contrato. Extinção do feito por perda de interesse que se afasta, pois o depósito do valor parcial foi feito após a propositura da ação. Reconhecimento da procedência parcial do pedido da devolução da garantia que se impõe. Lucros cessantes. Autor que ficou impossibilitado de usar o veículo locado desde a ocorrência de acidente envolvendo outro motorista auxiliar no período noturno até o comunicado de rescisão unilateral do contrato pelos réus. Valor da diária informado pelo autor que não foi contestado pelos réus e não se mostra exorbitante. Exclusão dos domingos. Ausência de previsão expressa de valor de diária a ser paga pela locação do táxi aos domingos. Experiência comum que demonstra não trabalhar o homem médio sete dias ininterruptamente. Precedentes. Reforma da sentença para redução do valor fixado a título de lucros cessantes. Dano moral. Contrato de 12 meses rescindido antes do prazo sem que tenha sido o autor informado qual o descumprimento contratual que teria motivado a rescisão. Réus que não demonstram ter o autor violado cláusula contratual que ensejasse a resolução do contrato. Abuso de direito. Violação da boa-fé objetiva e dos deveres de cooperação e lealdade contratual. Inteligência do art. 422 NCC. Função social do contrato (art. 421 NCC). Dano moral configurado. Valor fixado corretamente pela sentença a quo. Apelo dos réus parcialmente provido. Recurso adesivo provido em parte.
VI – Publicidade abusiva
Ação civil pública – publicidade abusiva – propaganda de tênis veiculado na TV – Utilização da empatia da apresentadora – Induzimento das crianças a adotarem o comportamento da apresentadora destruindo tênis usados para que seus pais comprassem novos, da marca sugerida – Ofensa ao art. 37, § 2º do CDC – Sentença condenatória proibindo a veiculação e impondo encargo de contrapropaganda e multa pelo descumprimento da condenação – Contrapropaganda que se tornou inócua ante o tempo já decorrido desde a suspensão da mensagem – Recurso provido parcialmente (TJSP – Ap. Cív. N 241.337-1 – 3º Câmara de Direito Público, Rel. Des. Ribeiro Machado).
VII – Protesto de cheque prescrito
0019576-72.2008.8.19.0202 – APELAÇÃO
DES. SÉRGIO JERÔNIMO A. SILVEIRA – Julgamento: 11.01.2011 – QUARTA CÂMARA CÍVEL
DIREITO CIVIL E COMERCIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. CHEQUE. PRESCRIÇÃO. CRÉDITO INEXIGÍVEL. PROTESTO. ABUSO DE DIREITO. DANO MORAL. ARBITRAMENTO DA COMPENSAÇÃO PECUNIÁRIA QUE DEVE REFLETIR A EXTENSÃO DO DANO. APELAÇÃO CÍVEL. RECURSO CONHECIDO. DADO PARCIAL PROVIMENTO, NA FORMA DO ARTIGO 557, § 1º – A, DO CPC.
VIII – Abuso do direito de informar
APELAÇÃO CÍVEL nº 0089353-97.2010.8.19.0001
RELATOR: DES. SEBASTIÃO RUGIER BOLELLI
APELAÇÃO CÍVEL. Indenizatória. Matéria ofensiva veiculada em jornal de grande circulação. Abuso do direito de informar. Sentença que fixa o dano moral em R$15.000,00. Se o direito à liberdade de expressão se contrapõe ao direito à inviolabilidade da vida privada, da honra e da imagem, entende-se que este último deve condicionar o exercício do primeiro. Manutenção da verba indenizatória. Precedentes deste Tribunal. NEGO SEGUIMENTO AO RECURSO, NA FORMA DO ARTIGO 557 DO CPC.
IX – Abuso do direito de operadora de plano de saúde
Trata-se de pedido de indenização por danos materiais e morais devido à recusa da prestadora de plano de saúde de internar, em emergência, na UTI, a paciente conveniada. O recorrente afirma no REsp que a recusa deu-se pelo fato de sua esposa ter-se submetido, 48 horas antes do mal-estar, a uma cirurgia estética que não estava coberta pelo contrato. Contudo, alega ser injusta essa recusa, visto não haver relação de causa e efeito entre a cirurgia e o mal-estar do qual resultou o coma da esposa, conforme comprovou a perícia técnica. Na origem, a ação foi julgada procedente, mas o TJ, por maioria de votos, embora tenha reconhecido a inexistência de nexo de causalidade entre o coma e a cirurgia estética, reformou a sentença, afastando a indenização pelo dano moral ao fundamento de que houve mero descumprimento de cláusula contratual, o que não geraria indenização por dano moral. Destacou o Min. Relator serem fatos incontroversos nos autos o coma, a recusa da operadora do serviço de saúde recorrida de internar na UTI a conveniada, a venda de imóvel para cobrir os gastos com o hospital credor e a falta de relação de nexo de causalidade entre o coma e a cirurgia realizada. No entanto, consignou-se nos autos haver a obrigação de a recorrida prestar a cobertura do plano de saúde, ou seja, mesmo o plano não cobrindo a cirurgia estética, caberia à seguradora cobrir os males porventura advindos da cirurgia. Observa o Min. Relator ser verdade que a jurisprudência deste Superior Tribunal entende que o mero descumprimento de cláusula contratual, em princípio, não gera dano moral indenizável, mas é possível a condenação de dano moral quando há recusa infundada de cobertura de plano de saúde. Explica que o descumprimento de norma contratual que não inflige dano moral seria aquele que causa apenas desconforto ou aborrecimento superficial, por exemplo: atraso na realização de uma cirurgia de rotina. Contudo, no caso, o descumprimento do contrato ultrapassou o simples desconforto e mal-estar: a segurada corria risco de morrer, era uma situação de urgência. Nessas circunstâncias, a seguradora não poderia ter recusado a cobertura solicitada, nem infligir sofrimento e angústia aos familiares da segurada, que, inclusive, venderam um imóvel para cobrir as despesas hospitalares. Ressalta ainda o Min. Relator que o CDC estabelece normas de ordem pública e interesse social e, em seu art. 4º, consagra os princípios da boa-fé objetiva e da equidade e coíbe o abuso de direito, como na hipótese. Ademais, assevera que as cláusulas restritivas do direito do consumidor devem ser interpretadas da forma menos gravosa a ele, ou seja, mais benéficas, visto não ser razoável que o segurado de plano de saúde seja desamparado quando mais precise de tratamento médico e hospitalar. Por todo o exposto, a Turma deu provimento ao recurso. Precedentes citados: REsp 1.072.308-RS, DJe 10/6/2010; REsp 1.037.759-RJ, DJe 5/3/2010; AgRg no REsp 1.059.909-SP, DJe 2/9/2010; AgRg no Ag 884.832-RJ, DJe 9/11/2010, e Ag 661.853-SP, DJ 4/4/2005. REsp 907.655-ES , Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 2/12/2010.
X – Abuso do direito na cobrança judicial de dívida já paga
A aplicação do art. 1.531 do CC/1916 (devolução em dobro por demanda de dívida já paga), que hoje corresponde ao art. 940 do CC/2002, independe de ação autônoma ou reconvenção. No caso, a má-fé do condomínio na cobrança das quotas condominiais (vide Súm. n. 159-STF) foi tida por incontroversa pelo tribunal a quo, a permitir ao condômino demandado pleitear a incidência do referido artigo por qualquer via processual que escolha. Assim, a interpretação dada pelo tribunal a quo quanto ao dispositivo, de que ele dependeria de reconvenção ou ação, não traduz a real interpretação do legislador e nem se coaduna com os princípios da boa-fé e da finalidade econômica e/ou social do direito, além de permitir a prática do abuso de direito e o indevido uso do aparato judicial. Precedentes citados: REsp 788.700-PB, DJe 30/11/2009; Ag 796.295-RJ, DJ 7/7/2007, e REsp 608.887-ES, DJ 13/3/2006. REsp 661.945-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 17/8/2010.
VI – Conclusão
À guisa de conclusão, aplaude-se a atual perspectiva objetiva do abuso do direito por incorporar a consolidação de uma mentalidade jurídica voltada para a funcionalidade dos institutos e, ato contínuo, exigir dos membros da sociedade um comprometimento maior com os ideais da solidariedade, justiça, lealdade e confiança.
E que os ideais de Dom Quixote de La Mancha continuem inspirando advogados, membros do ministério público, defensores públicos e magistrados na luta contra esse inimigo atroz que é a injustiça na sua mais ampla acepção.