Arbitragem na berlinda

30 de agosto de 2022

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Projeto de Lei que propõe limitar procedimentos por árbitro e dar publicidade total às arbitragens vira o foco das atenções no V Congresso Internacional do CBMA

Durante os dias 11 e 12 de agosto, expoentes da comunidade arbitral brasileira reuniram-se no icônico Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro (RJ), para a quinta edição do Congresso Internacional de Arbitragem do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA).

Mais de 40 palestrantes e “provocadores” de diversas nacionalidades participaram dos 12 painéis temáticos, que proporcionaram intensa troca de experiências entre os mais de 500 participantes inscritos. Vários foram os temas debatidos, mais um deles esteve presente em todos os painéis: a discussão sobre a tramitação, na Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei nº 3.293/2021, de autoria da Deputada Federal Margarete Coelho (PP-PI) e de outros seis parlamentares, que foi apelidado pelos especialistas de “PL antiarbitragem”.

Dentre as principais mudanças propostas pelo projeto de lei estão a limitação do número de procedimentos simultâneos para cada árbitro, a ampliação das hipóteses passíveis de “revelação” pelos árbitros e coárbitros e a publicidade de todas as decisões arbitrais, incluindo a divulgação dos valores envolvidos – considerada uma alteração sensível, por atingir em cheio a confidencialidade, um dos principais diferenciais dos procedimentos arbitrais em relação ao processo judicial.

Em geral, os palestrantes do Congresso criticam o fato do projeto de lei buscar alterar a Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/1996) sem debate prévio com as entidades do setor. Lembram que se trata de uma lei produzida à luz das recomendações da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (Uncitral) e que já foi reformada, em 2015, após meses de amplos debates pela Comissão de juristas reunida pelo Senado Federal, sob a coordenação do Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão. Críticas que são compartilhadas por várias seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pelo Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e por câmaras de arbitragem de todo o País, como o próprio CBMA, que já se manifestaram publicamente contra o PL.

“Ninguém chuta cachorro morto” – O PL nº 3.293/2021 foi múltiplas vezes citado, por exemplo, no painel que reuniu os experientes árbitros Eleonora Coelho, Hermes Marcelo Huck e Rodrigo Fonseca. Foi escalado para provocar o debate o árbitro Marcelo Ferro, que fez duras críticas ao PL após apresentar a definição dos dicionários para a expressão “estar na berlinda”, que possui, dentre outros possíveis significados, ser objeto de comentários, atenção ou curiosidade, ou ver-se em evidência por motivos não lisonjeiros.

“Os árbitros estariam na berlinda? Parece que sim. Os árbitros são postos na berlinda por atos das partes, quando fazem impugnações frívolas no curso do procedimento arbitral ou impugnações vergonhosas após seu encerramento. Os árbitros são postos na berlinda por atos específicos do Poder Judiciário, que muitas vezes anula sentenças arbitrais sem levar em conta as peculiaridades do caso concreto e as peculiaridades do processo arbitral. E os árbitros são postos na berlinda quando se veem diante de atos como esse malfadado projeto de lei nº 3.293/2021”, alfinetou Ferro, para quem o PL “é impertinente, arbitrário e completamente dissociado dos interesses da arbitragem brasileira e internacional”.

Ferro passou então a palavra aos participantes, indagando se os árbitros estão de fato na berlinda, por quem eles são postos na berlinda e o que podem fazer para sair de lá.

Para o Professor Titular Sênior de Direito Econômico e Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Hermes Marcelo Huck, os árbitros são os primeiros a “receber as pedradas”, mas quem está na berlinda é a arbitragem. “Está na berlinda porque a despeito de ser milenar, no Direito brasileiro ela é inovadora. (…) Como bom advogado, para dar um pouco de seriedade à minha participação, vou recorrer a Justiniano, que nas suas Institutas dizia, o que também vale para a arbitragem: ‘Ninguém chuta cachorro morto’”, resumiu Huck.

Campanhas de mídia – Em sua crítica à proposta do PL nº 3.293/2021 de limitar o número de procedimentos, Rodrigo Fonseca, que compõe as listas de várias câmaras brasileiras de arbitragem, avaliou que o número de arbitragens não é o critério adequado para avaliar a disponibilidade dos árbitros: “Várias vezes tive problemas em tribunais arbitrais com coárbitros que não se mostravam disponíveis, mas que tinham muito menos arbitragens do que eu tinha. Depende da diligência de cada um, o sujeito pode ter duas arbitragens e fazer 500 outras coisas. (…) Um professor no início da faculdade me disse que se você tiver um problema grande, deve procurar um advogado que seja bem ocupado, porque o advogado que não tem ninguém, nunca tem tempo para o seu caso”.

Já a Presidente do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC), Eleonora Coelho, devolveu a provocação: “Há motivos não lisonjeiros para que a arbitragem e o árbitro estejam na berlinda?”.

Ela disse desconhecer pesquisas sérias que tenham identificado o aumento no número de ações de anulação de sentenças arbitrais, impugnações ou remoções de árbitros. “No ano passado, o Comitê Brasileiro de Arbitragem conduziu pesquisas acadêmicas que concluíram justamente em sentido oposto, que o Judiciário controla a arbitragem nos estritos limites legais, o que é salutar. Portanto, não consigo enxergar a existência de motivos não lisonjeiros que nos coloquem na berlinda. Ao contrário, há pesquisas que mostram o aumento do número de casos e dos valores envolvidos, mas não há nenhuma pesquisa equivalente que mostre o aumento das ações de anulação. O que vejo, sim, são campanhas de mídia, com pouca expressão e credibilidade, que querem fazer crer que existiam motivos não lisonjeiros que nos colocariam a todos, árbitros e arbitragem, na berlinda”, pontuou Eleonora Coelho.

Audiência pública – Em um dos painéis mais aguardados do Congresso, o Ministro do STJ Luis Felipe Salomão e o MinistroChefe da Advocacia-Geral da União (AGU), Bruno Bianco, posicionaram-se contra o PL nº 3293/2021. “Vou me manifestar sobre o PL ainda sem qualquer tipo de posicionamento político do Governo Federal, mas não tenho dúvidas de que certamente o parecer da Advocacia-Geral da União será muito ouvido. (…) O posicionamento da AGU hoje é contrário ao PL”, pontuou o Ministro Bianco, arrancando demorados aplausos da audiência.

Segundo Bianco, um requerimento para a realização de audiência pública sobre o PL, ainda sem data marcada para acontecer, já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara. “Eu me dispus a participar da audiência pública e o Gustavo Schmidt (Presidente do CBMA) vai comigo. (…) Já temos dois pareceres específicos em relação a isso na AGU, apontando inconstitucionalidades em alguns pontos e inconvenientes em outros, além de sugestões. Quero deixar a AGU absolutamente à disposição e afiançar em público que participaremos dessas discussões. O Ministro Salomão certamente não é um ator, mas o ator dessa questão, que se fará presente e nos brindará com o espírito público, jurídico e técnico que lhe é peculiar nessa discussão. Não tenho dúvidas de que, em conjunto com o parlamento, traremos uma melhoria fundamental que não ultraje o sistema; que não faça com que o País passe por retrocessos; que permita que o mundo continue acreditando e investindo no Brasil, usando nosso sistema; que estejamos em linha com as experiências internacionais, especialmente da OCDE. Estou absolutamente tranquilo de que teremos a maturidade para, juntamente com o parlamento, melhorar esse projeto”, acrescentou o Ministro.

Em sua participação, o Ministro Luis Felipe Salomão disse ter verificado nos anais da Comissão de juristas que todos os temas que estão no PL nº 3.292/2021 já teriam sido amplamente discutidos. “Na Comissão se discutiu com grande aprofundamento se deveria haver limites para a atuação do mesmo árbitro em casos simultâneos. Lá também discutimos a amplitude do dever de revelação, com comparações com o cenário mundial, nos países nos quais há essas questões. Discutimos a publicidade e a jurisprudência arbitral. Foi um dos únicos projetos de lei que conheço que entrou e saiu do Congresso do mesmo jeito. Estamos falando de 2015, não faz tanto tempo”, relatou o Ministro Salomão.

“É claro que podem ter surgido temas relevantes nesse período que desafiam algum debate. Mas a matéria foi debatida pelo Parlamento. Certa ou errada, se a cada soluço tivermos que voltar atrás, vamos gerar absoluta insegurança jurídica para todo o sistema. Não vejo como rever agora, em tão pouco tempo, sem nenhum fundamento razoável, o que já foi amplamente discutido”, acrescentou Salomão, arrancando nova salva de palmas da plateia.

Avaliação – “Fizemos uma escolha corajosa. O tema do evento ‘Arbitragem na Berlinda’ não poderia ser mais atual. De fato, tem surgido alguns questionamentos em relação ao emprego da arbitragem como método de solução de conflitos e os palestrantes não se furtaram a enfrentá-los. A verdade é que a arbitragem funciona muito bem no Brasil. Eventuais problemas devem ser enfrentados com parcimônia, com a dosagem adequada, sem desnaturar o instituto. Este PL nº 3.293/2021, da autoria da Deputada Margarete Coelho, é o típico remédio que, ao invés de curar a enfermidade, vai matar o paciente. Não é à toa que o Ministro-Chefe da AGU, Bruno Bianco, foi tão enfático em se manifestar contrariamente a ele, no que foi seguido pelo Ministro Salomão na sua exposição”, avaliou o Presidente do CBMA, Gustavo Schmidt.