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Em defesa da democracia, dos direitos fundamentais e da Constituição

27 de fevereiro de 2019

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Em eleição quase unânime, com votos de 80 dentre 81 conselheiros (um voto em branco), o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) escolheu o advogado pernambucano Felipe Santa Cruz, de 46 anos, como seu novo presidente. Graduado em Direito pela PUC-Rio, com mestrado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Santa Cruz começou a atuar na Ordem em 2006, como conselheiro da OAB-RJ. Em 2013, chegou à presidência da seccional, cargo no qual se manteve até o ano passado, quando se licenciou para disputar a eleição ora vencida no Conselho Federal.

Nessa entrevista à Revista Justiça & Cidadania, ele comenta os planos da gestão no triênio 2019/2021 e suas preocupações quanto à possibilidade de retrocessos em direitos sociais diante das reformas em tramitação no Congresso Nacional. Fala ainda sobre a necessidade de ampliar e aprofundar a discussão de outros temas prioritários para o País, como a reforma da Previdência, o desafogamento da Justiça e o aperfeiçoamento do sistema penitenciário.    

Justiça & Cidadania – Quais são as metas e as perspectivas de sua gestão à frente do Conselho Nacional da OAB?
Felipe Santa Cruz – A luta em defesa das prerrogativas será prioridade. Temos o Projeto de Lei no 8.347/2017, que criminaliza o desrespeito às prerrogativas, a um passo de ser aprovado. Foi um trabalho formidável conduzido pelo presidente Claudio Lamachia e por diversos integrantes do Conselho Federal da OAB. Nossa missão é trabalhar para concluir esta tarefa e a concluiremos. Trabalharemos diuturnamente por isso, porque a aprovação dessa proposta vai inaugurar novo paradigma para a advocacia e para a sociedade. Além disso, o País tem diante de si muitos desafios. Nos últimos anos, a Ordem participou ativamente dos desdobramentos e debates a respeito da crise política, da crise econômica, da luta contra a corrupção e contra a impunidade. Em muitas situações, foi vanguardista. Continuaremos a atuar nesses assuntos. Em todas essas frentes existem reformas e mudanças sendo propostas. A meu ver, o desafio é conduzir todos esses debates de maneira ampla e inclusiva, tendo como norte a seguinte premissa: não retroceder. Reformas e mudanças legislativas não podem ser usadas como justificativa para retrocessos naquilo que já avançamos. As conquistas sociais não são a causa dos problemas e, portanto, não podem ser ceifadas como parte da solução. Creio que, paulatinamente, isso vai ficar claro para o cidadão. Na medida em que superarmos a polarização e aprofundarmos o debate, a sociedade saberá ponderar os problemas de maneira a demandar soluções avançadas. Precisamos resgatar o diálogo. A pauta ambiental também deve receber a devida atenção, pois apesar de prioritária, ela acaba sendo marginalizada. Já está passando da hora de levar o assunto com a seriedade necessária. Se não fizermos esse debate, se não tomarmos as decisões agora, as consequências serão trágicas e tudo mais passará a ser menor.

J&C – Como será o relacionamento com as seções estaduais?
FSC – Em primeiro lugar, uma relação de muito respeito à autonomia de cada seccional. Presidi a seccional do Rio de Janeiro e entendo perfeitamente o quanto isso é importante. Ter presidido uma seccional também me ofereceu a experiência de entender até que ponto devemos cooperar sem que isso seja uma interferência. A relação será de muita parceria e sinergia, respeitando a autonomia.

J&C – O Exame da Ordem é frequentemente questionado. Será preciso reafirmar sua importância e legalidade?
FSC – A OAB tem se apresentado desde sempre para a tarefa de colaborar no processo de aprimoramento do Ensino Superior como um todo, não apenas do Direito. Muitas vezes, infelizmente, prevalecem interesses que nada têm a ver com os do País e de nossa sociedade. São interesses privados e particulares de corporações e pessoas que ganham muito dinheiro com a proliferação desenfreada de cursos sem nenhum critério. Isto posto, o Exame de Ordem tem sido um sustentáculo para assegurar qualidade aceitável dos egressos das universidades. Aquele que se preparou, que está devidamente apto para exercer a advocacia em sua plenitude, não tem problemas em conseguir a aprovação. As altas taxas de reprovação só evidenciam que existe problema grave em grande número de cursos, que não preparam seus alunos e destroem sonhos, cobrando caro por isso. Muitas vezes a família inteira faz sacrifícios e investe o que não tem em um curso de Direito, acreditando naquela instituição, apostando na Educação, e são enganados. Na hora do Exame de Ordem vem a realidade, mas é tarde demais. Vítimas de estelionato educacional e compreensivelmente frustradas, essas pessoas se revoltam. Infelizmente, há muita desinformação e esse sentimento é canalizado contra o Exame de Ordem e contra a OAB, mas os responsáveis são aqueles que patrocinam a proliferação irresponsável de cursos de Direito sem o menor critério. O MEC precisa responder por isso. Temos de proteger o Exame de Ordem. Não tenho dúvidas de que o cidadão, ao recorrer a um advogado, procura um profissional preparado e capacitado para defender seus interesses. O Exame de Ordem tem sido a ferramenta que garante isso.

J&C – Paradoxalmente, enquanto os tribunais estão abarrotados de processos, alguns segmentos da sociedade clamam por mais acesso à Justiça. O que fazer para alcançar uma situação mais equilibrada?
FSC – O Brasil enfrenta hoje problema muito sério nesse sentido. A capacidade instalada do Poder Judiciário está aquém das necessidades da sociedade, o que gera déficit perigoso no acesso à Justiça. Essa é a origem dos problemas que você citou. A OAB tem sido uma voz constante a respeito desses problemas e continuaremos a ser. Várias comarcas não têm varas funcionando por falta de juízes e servidores. Podemos dizer, portanto, que há lugares em que a Justiça não chega, onde a lei é letra morta, onde os direitos do cidadão não estão assegurados. Se não resolvermos este gargalo, criaremos um ambiente perverso e antidemocrático, no qual a Justiça torna-se utopia abstrata, algo que não pode ser alcançado pelos cidadãos. Quando isso acontece, não podemos mais falar em democracia. Justiça que tarda é Justiça que falha.

J&C – A conciliação, a mediação e a arbitragem são apontados como instrumentos eficientes para descongestionar o Judiciário. As prerrogativas dos advogados estariam garantidas nestes métodos?
FSC – Não há dúvida de que a arbitragem e a mediação são instrumentos que contribuem para diminuir a carga sobre uma Justiça já sobrecarregada. A meu ver, a aprovação do Projeto de Lei no 8.347/2017 terá impacto profundo em todo o espectro de atuação da advocacia ao proteger as prerrogativas que não são do advogado, são do cidadão que é ali representado.

J&C – Qual é sua opinião sobre a implantação do Processo Judicial Eletrônico (PJ-e) e dos sistemas de inteligência artificial nos tribunais?
FSC – A falta de investimentos mais robustos e fundamentais na estrutura de acesso à Internet banda larga tem sido grande obstáculo à utilização plena do PJe. Além dos problemas relacionados às múltiplas versões utilizadas pelos diferentes tribunais nas diversas instâncias, a questão do acesso é um entrave intransponível. Em muitas comarcas a falta de acesso à Internet banda larga de qualidade impede o trabalho de advogados e advogadas e priva o cidadão do direito à Justiça. É preciso trabalhar nos dois aspectos. Reduzir o número de versões do PJe, maximizando sua compatibilidade, e aumentar o investimento na estrutura de acesso à Internet banda larga. Sobre a inteligência artificial, o presidente Claudio Lamachia criou a coordenação específica para estudar e acompanhar o assunto e pretendo mantê-la. A OAB tem manifestado preocupação com os recentes lançamentos de ferramentas, como os robôs virtuais, para recursos jurídicos em diversas áreas em que a dispensa da atuação de advogadas e advogados é vendida como grande vantagem. O objetivo da coordenação é realizar trabalho de preparação para formular a autorregulamentação do uso de inteligência artificial no exercício do Direito. É fundamental assumirmos protagonismo nesse debate enquanto o assunto ainda é incipiente. Bons fundamentos podem traçar um caminho harmônico entre a advocacia e o desenvolvimento tecnológico, que sabemos ser inevitável. Isso não quer dizer que aceitaremos que oportunistas ponham a advocacia em posição marginal e subserviente por meio da massificação açodada dessas ferramentas.

J&C – Qual é a avaliação sobre a gestão da OAB que ora se despede?
FSC – A melhor possível. O presidente Claudio Lamachia comandou a entidade, que congrega e representa um milhão e cem mil profissionais da advocacia, durante período conturbado da história do país com a destreza que a tarefa demandou. A Ordem não se esquivou em nenhum momento para assegurar a preservação de direitos fundamentais, contribuir com o combate à corrupção e à impunidade, mantendo a equidistância necessária do maniqueísmo político derivado da crise política. A OAB foi responsável por dois pedidos de impeachment de presidentes da República, pediu o afastamento do ex-presidente da Câmara dos Deputados, requereu acesso às delações de políticos e executivos de peso envolvidos em escândalos. Foram tempos muito atribulados, em que era muito fácil cometer erros, era muito compreensivo incorrer em deslizes. A Ordem não apenas não os cometeu como ainda foi ativa e capaz de ostentar muitas conquistas para a advocacia e para a sociedade, em meio ao ambiente árido da crise. Portanto, a gestão que se despede deixa um legado muito importante.

J&C – O senhor enxerga riscos à democracia no atual contexto político?
FSC – Não diria que há risco iminente à democracia, mas a polarização política preocupa à medida em que se acentua. Ela pode nos levar por caminhos sombrios. A OAB está alerta e atuará em defesa da democracia, dos direitos fundamentais e da Constituição. Também é preocupante a onda de retrocessos em direitos já conquistados por nossa sociedade. Há grande equívoco em associar direitos sociais a amarras do crescimento econômico e da superação da crise. É possível, e essa deve ser a meta, superar a crise sem retroceder, seja em direitos sociais, seja em relação a aspectos basilares de nossa democracia.

J&C – A população carcerária nacional ainda vive em péssimas condições de alojamento, higiene e justiça, sujeita a episódios de tortura e maus tratos. A OAB vai enfrentar a cultura de encarceramento em massa e trabalhar para melhorar a situação dos encarcerados?
FSC – A OAB tem alertado para a situação carcerária há bastante tempo. Qualquer solução para a questão da segurança pública passa por isso. Não há como tangenciar o assunto. Infelizmente, toda vez que se propõe o debate sobre a situação carcerária, isso acaba de alguma forma deturpado, como se a intenção fosse proteger bandido. O que a sociedade deve compreender é que enquanto o sistema carcerário for controlado pelo crime organizado, e não há muita dúvida de que esse é o caso hoje, esses presídios convertem-se de instalações destinadas à punição e ressocialização de criminosos para locais de recrutamento, formação e aprimoramento de integrantes das organizações que os dominam. Continuaremos a propor esse debate e a defender mudança nesse paradigma. Evidentemente, isso passa pela discussão de soluções para a questão da cultura do encarceramento, pela situação de muitos internos que estão presos sem condenação e daqueles que já cumpriram suas penas, mas permanecem presos. Esses casos são mais comuns do que se imagina e, obviamente, isso agrava o problema.

J&C – Em entrevista, o então presidente eleito Jair Bolsonaro defendeu o fim das Audiências de Custódia, instrumento que tem contribuído para reduzir a superlotação dos presídios e os excessos policiais. Qual é sua opinião a respeito?
FSC – A explosão da população carcerária é um problema real. As audiências têm contribuído para atenuar o problema. Existe um senso comum de que o encarceramento vai acabar com a criminalidade, mas isso não é verdade. A população carcerária não para de crescer no Brasil e os índices de criminalidade também aumentam. Como temos um sistema carcerário destroçado e controlado pelo crime organizado, os internos acabam cooptados pelas facções, por bem ou por mal. Ou seja, além de estatisticamente o encarceramento não significar queda na criminalidade, presos de pequena periculosidade são convertidos em ameaça muito maior por meio de dívidas de sangue adquiridas no sistema prisional. Esse é o cenário. A audiência de custódia tem regras, não é um liberou geral. É um instrumento que prevê a apresentação do preso ao juiz em até 24 horas após a apreensão, para que o magistrado avalie se a restrição à liberdade deve ser mantida, se a pessoa pode esperar o julgamento em liberdade, ou se é o caso da aplicação de penas alternativas. Tem sido um instrumento importante nesse contexto caótico. Mais uma vez, afirmo: não podemos achar que será possível resolver o delicado e complexo problema da Segurança Pública com fórmulas mágicas, milagrosas, ou em um repente qualquer dentro do calor da polarização política. Precisamos discutir o assunto com cautela. A OAB tem promovido audiências e seminários há muito tempo para discutir o assunto com especialistas de peso e temos respaldo para reafirmar nossa defesa da Audiência de Custódia.

J&C – Continua a tramitar no Congresso a PEC que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. A OAB tem posição histórica contrária a esta alteração. Como o senhor vai encarar essa discussão?
FSC – Propondo o debate. Voltaremos a discutir interna e externamente este tema, que deve ser cuidadosamente apreciado pela sociedade. É justo o clamor pelo fim da impunidade e da violência, mas isso não será alcançado por meio de retrocessos. É um tremendo engano acreditar que retroceder será o caminho para avançar. A redução da maioridade penal é vendida por muitos setores como uma espécie de panaceia para a questão da segurança pública, mas, uma vez levada a cabo, acarretará toda uma gama de novos problemas associados à medida, que parecem estar à margem da discussão. O aumento da população carcerária, justamente quando buscamos alternativas, e o aliciamento de menores de 16 anos são apenas dois exemplos. Qual será o resultado da convivência de garotos de 16 anos em presídios dominados por facções criminosas? A mudança do status de imputabilidade desses jovens terá muitos desdobramentos que não se restringem à prisão. Qual será o impacto desses garotos no trânsito? Ou seja, o tema deve ser debatido em toda sua amplitude, com toda a ponderação necessária.

J&C – Qual é a sua avaliação sobre as reformas que tramitam no Congresso, como a reforma
da Previdência? Há risco de retrocessos para os trabalhadores?
FSC  – Sim, há risco. O que vem acontecendo com a Justiça do Trabalho a partir da aprovação da reforma trabalhista? Um processo de desmonte que é muito prejudicial ao País. Temos feito um esforço grande, ao lado de outras entidades, para defender a Justiça do Trabalho. Realizamos na Câmara dos Deputados o Ato Nacional em Defesa da Justiça do Trabalho e dos Direitos Sociais, no qual debatemos o problema. A Justiça do Trabalho não é de nenhum governo, pertence ao País. É responsável pela pacificação dos conflitos, reequilibrando as desigualdades sociais existentes. O ato foi muito frutífero e teve a participação de diversas entidades ligadas à Justiça do Trabalho que subscrevem a Carta de Brasília. Impetramos também Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal para questionar pontos da reforma trabalhista que limitam os valores das indenizações ao criar uma espécie de tarifação para o pagamento.

O que a população deve estar atenta é que as reformas devem ser feitas visando o interesse de nossa sociedade e não deste ou daquele governo. Os governos passam, mas o País permanece. Reformar não pode significar retroceder. Ao contrário, as reformas devem ser instrumento de avanço, de aprimoramento. Infelizmente, no calor da polarização política existe muito revanchismo. As reformas acabam sendo usadas como ambiente para que lados derrotados no passado tentem reverter o entendimento pacificado lá atrás. Não pode ser assim. As reformas devem ser fruto de amplo debate, com tempo e abrangência suficientes para legitimá-las. Elas não podem ser pautadas por interesses pessoais e particulares e nem por cronogramas impostos pelo mercado. Nosso País precisa estar atento às demandas do mercado, mas isso não deve pautar o ritmo das discussões. Temos de ser cuidadosos e buscar aquilo que for melhor para o País, hoje e no futuro, sob risco de termos de voltar a esses temas a médio prazo para corrigir equívocos frutos do açodamento.

J&C – O ministro da Justiça, Sérgio Moro, anunciou que vai enviar ao Congresso projeto de lei anti-crime que inclui, dentre outras medidas, a adoção do plea bargain. Enxerga riscos aos direitos fundamentais do acusado, como o direito de não autoincriminar-se e o direito a um julgamento justo feito por juiz imparcial?
FSC – Muitas vezes a OAB tem natureza contramajoritária e isso não é muito bem entendido pela maioria da sociedade. O tempo passa, as coisas se esclarecem e aqueles posicionamentos que pareciam estranhos se encaixam no contexto e passam a fazer todo o sentido. A OAB já passou por essa situação em inúmeras oportunidades ao longo de sua história, o que tem a ver com o caráter vanguardista que a Ordem sempre teve. Digo isso porque temos sido criticados por defender determinadas posições nesse contexto de polarização. Quando se busca uma solução ponderada, você acaba sendo alvo de todos lados que querem radicalizar. A respeito do pacote anticrime, nossa posição é de que o assunto deve ser cuidadosamente avaliado. Designei os presidentes da Comissões Especial de Garantia do Direito de Defesa, Juliano Breda, e da Comissão Nacional de Legislação, Ticiano Figueiredo, como responsáveis pela realização de estudo profundo e abrangente de cada uma das proposições contidas no pacote anticorrupção e antiviolência divulgado pelo Governo Federal. É fundamental que projeto dessa abrangência seja debatido à luz da Constituição Federal. Tenho dito que tão forte quanto o desejo de conter a escalada da violência e da impunidade deve ser a vontade de realizarmos essa tarefa como uma sociedade justa, democrática e moderna, que reconhece a importância dos direitos fundamentais e o respeito ao devido processo legal.

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