Essencialidade da equidade de gênero no Poder Judiciário

12 de março de 2024

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A busca pela igualdade é incessante e um processo histórico no qual nenhuma sociedade deve retroceder. O desafio imposto à atual geração de magistradas e magistrados é lutar pela paridade entre mulheres e homens nos respectivos Tribunais e em todas as Cortes de Justiça de modo que esse cenário reflita a ideal composição do Poder Judiciário e possa impactar diretamente na ocupação de espaços políticos e decisórios. 

Diante das recentes resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Poder Judiciário assume não só o compromisso de garantir, de forma mais efetiva, a proteção dos direitos humanos, voltando os olhos para as desigualdades sociais e de gênero no exercício da jurisdição, como também o protagonismo de eliminar o desequilíbrio de gênero existente nos Tribunais brasileiros. 

A Resolução nº 492, de 17 de março de 2023, estabeleceu a adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário, consolidando a anterior Recomendação nº 128, de 2022, sobre a temática. Tal tomada de posição é extremamente relevante para afastar a cultura machista, sexista e racista ainda presente na sociedade, com o reconhecimento das micro agressões sofridas cotidianamente pelos grupos marginalizados, as violências e discriminações e tantas outras violações de direitos fundamentais. Sem essa mudança de chave, as diferenças que separam as cidadãs e cidadãos pelas confluências de gênero, sexualidade, raça e classe, tornam-se praticamente intransponíveis.

A esse respeito, Flávia Biroli aponta que “violências e constrangimentos se organizam segundo convergências de gênero, sexualidade, classe e raça”. A autora traz relevante advertência de que “não é apenas a ação discriminatória, mas também a inação do Estado que dá livre curso às formas múltiplas de violência estrutural. A recusa dos direitos sexuais, a homofobia e o sexismo são vividos em sua conjugação com as desigualdades socioeconômicas e regionais, o racismo, aspectos geracionais e deficiências, entre outros fatores”.  

O tema da igualdade de gênero no Poder Judiciário possui íntima relação com a necessidade de promoção de equidade em todos os segmentos da sociedade, sendo relevante destacar as desigualdades institucionais, especialmente nos espaços decisórios e de poder, e também o papel do Poder Judiciário no equilíbrio das relações laborais e das relações entre os cidadãos em geral, com destaque para as questões de gênero, interseccionais e relacionadas aos vulneráveis, para o alcance de igualdade material.

Em decisão histórica e unânime no que diz respeito à equidade na magistratura brasileira, o CNJ aprovou a criação de alternância de gênero no preenchimento das vagas por merecimento nos Tribunais. Com a decisão, as Cortes deverão utilizar lista exclusiva de mulheres, alternadamente com a lista mista tradicional. A medida foi aprovada em 26 de setembro de 2023, sob a relatoria da Conselheira Salise Sanchotene e a Presidência da Ministra Rosa Weber, com a alteração da Resolução nº 106/2010, que trata dos critérios objetivos para a aferição do merecimento para a promoção e acesso ao segundo grau.

No dia anterior à aprovação da norma, a Comissão Anamatra Mulheres divulgou nota pública sobre a essencialidade da equidade de gênero no Poder Judiciário, na esteira da Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário (Resolução nº 255/2018 do CNJ). Na ocasião, foi ressaltado que a construção de espaços democráticos e de igualdade entre homens e mulheres deve ser concretizada com políticas afirmativas. Nesse sentido, destacou-se a ocupação, pelas mulheres, de cargos de direção nos Tribunais, além de outras medidas efetivas para a paridade de gênero na magistratura, como a participação nos espaços de escolha para a promoção. Afirmou-se, ainda, a relevância da iniciativa para afastar a reprodução do sistema patriarcal e discriminatório na sociedade em geral, o que também resulta na supressão da perspectiva de gênero e dos aspectos interseccionais nos julgamentos. 

Mesmo no caso da Justiça do Trabalho, em que o número de magistradas é bastante expressivo, é indispensável a participação ativa nos espaços políticos e de tomada de decisão, entendida como paridade real. Como aponta Camila de Jesus Mello Gonçalves: “para alcançar a igualdade de gênero não basta que o número de mulheres se aproxime do número de homens. É necessário garantir a qualidade da presença feminina sob o enfoque da participação efetiva nas decisões dos Tribunais”. 

No mesmo sentido, destaca-se a lição de Nancy Fraser quando assevera que “a paridade não é apenas uma questão de números”, mas sim “de um estado qualitativo”, uma “paridade participativa”. A autora discorre sobre a importância da “emancipação” em oposição à dominação, incluindo a paridade como uma das categorias da emancipação. Fraser assevera que a “participação paritária” deve considerar “três dimensões da dominação”, que são: “a distribuição econômica, o reconhecimento cultural e legal e a representação política”, destacando que essas desigualdades, tanto quanto a de representação, “podem constituir (e constituem) obstáculo à paridade”.

De acordo com o diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário, publicado pelo CNJ em 2023, as magistradas ocupam 38% dos seus quadros, o mesmo que foi registrado em pesquisa anterior, realizada em 2019. Na época, havia na Justiça do Trabalho 50,5% de magistradas, porém constatou-se pequena redução em 2023, para 49%. A Justiça Federal continuou no mesmo patamar de participação feminina, de 31%, e a Justiça Eleitoral aumentou de 31,3% para 34%. 

As mulheres representam no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Tribunal Superior do Trabalho (TST) 23% e 22%, respectivamente, ao passo que o Superior Tribunal Militar (STM) registra o menor percentual entre os Tribunais Superiores (17%).

Segundo a pesquisa sobre dificuldades na carreira da magistrada, realizada pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat), 35,9% das juízas do Trabalho participantes não acreditavam em igualdade para concorrer a cargos diretivos nos Tribunais. 

Referido incentivo deve ser estendido igualmente para a participação de mulheres negras no Poder Judiciário. Dados da pesquisa do CNJ sobre negros e negras no Poder Judiciário (2021), mostram que a proporção de mulheres negras atuando como magistradas é bastante aquém da participação delas no conjunto da população brasileira. Diante de tal quadro e considerando a Portaria CNJ nº 133 de 2018, que insere na agenda do Poder Judiciário a temática dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030 da ONU, em especial o ODS 5, que trata de igualdade de gênero, e o ODS 16, sobre Paz, Justiça e Instituições Eficazes, é crucial que o Poder Judiciário assuma posição não só na conscientização dos temas defendidos em âmbito mundial, mas para a efetiva adoção de feição republicana e que reflita a diversidade da sociedade brasileira, em sintonia com os princípios constitucionais e Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. 

Quanto às decisões judiciais baseadas na equidade de gênero, deve-se refletir sobre a necessária superação de estereótipos e de vieses tradicionais de gênero e raça, as relações assimétricas de poder, o machismo (estrutural e organizacional), o patriarcado e os caminhos para o reconhecimento de igualdade material, como dever de não discriminação, imposto não só pela Constituição de 1988, como também pela Convenção Americana de Direitos Humanos e por outros instrumentos internacionais de observância obrigatória pelo país e demais Estados-partes.

Para o alcance da verdadeira igualdade de gênero é importante considerar as barreiras que ainda limitam a atuação das mulheres na política, na economia, na sociedade e no trabalho, com a consideração de pesquisas, análises estruturais, estatísticas, econômicas e da legislação, assim como de marcadores sociais, para as necessárias mudanças cultural, postural e prática.

Chimamanda Ngozi Adichie destaca as dificuldades para o trato de questões de gênero ou feministas, apontando que “as pessoas se sentem desconfortáveis”, sobretudo porque “mudar o status quo é sempre penoso”. A autora ressalta a importância de se pontuar a especificidade das questões de gênero e não apenas apontá-las, genericamente, como direitos humanos, embora estejam inseridas na citada categoria. Segundo afirma, a utilização de outras expressões em questões de gênero “não faria justiça às mulheres e às opressões sofridas ao longo dos séculos”. 

É essencial que o Poder Judiciário esteja atento, a fim de interpretar e aplicar a legislação com base na Constituição e na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. É indispensável que o Poder Judiciário seja composto de modo plural e representativo da sociedade, para que seus julgamentos possam estar mais alinhados com os reclamos da sociedade no reconhecimento dos direitos fundamentais, sociais e humanos. Assim, o Poder Judiciário poderá deixar de reproduzir, em alguns casos, estereótipos, relações assimétricas de poder ou de reafirmar estruturas organizacionais desiguais e fundadas em alicerces intolerantes ou preconceituosos. 

Mais de 60 anos depois de Habermas escrever “Mudança Estrutural da Esfera Pública (MEEP)” não se pode deixar de ficar impressionado com a cegueira da obra para as dimensões de gênero da esfera pública. A exclusão das mulheres da esfera pública burguesa não foi acidental ou contingente, mas constitutiva desse espaço ou, melhor, “a exclusão das mulheres teve um significado estruturante”, como reconheceu Habermas, e isso gera impactos ainda hoje. Ao discutir de maneira crítica a esfera pública habermasiana, Nancy Fraser, trazendo à baila a critica feminista, afirma, entre outros pontos, que a igualdade social é uma condição necessária para a democracia política. A autora aponta que a história da esfera pública oficial, com seu modo hegemônico de dominação, foi acompanhada pela história alternativa de públicos concorrentes chamados de “contra-públicos”, aqueles formados por aqueles em situação de poder desfavorável ou subordinada.

Se tomamos os espaços de poder, como esse espaço da esfera pública, fica claro que por mais histórico que esse debate possa parecer, ele permanece atual. A presença feminina nos espaços de poder é um tema de relevo especialmente quando se trata de instituições públicas, e a Defensoria Pública, com sua missão de promover acesso à justiça e garantir direitos fundamentais, não foge desta discussão.

A análise da história da Defensoria Pública leva à conclusão de que, como em muitas outras áreas, a presença feminina sempre foi relegada ao papel secundário. O retrato do poder institucional era essencialmente branco heteronormativo. A exclusão política e jurídica das mulheres, a violência doméstica, a divisão de trabalho, a discriminação social e cultural, são manifestações de poder social que possuem lógicas próprias, ainda que cruzadas e que também atingem a instituição. 

No entanto, nos últimos anos, com o avanço dos movimentos de igualdade de gênero e a crescente conscientização sobre a importância da representação feminina, tem havido mudança significativa neste cenário. Cada vez mais mulheres têm ocupado cargos de destaque e liderança, como defensoras públicas-gerais, presidentas de associações de classe e coordenadoras de diversas áreas de atuação. 

A presença feminina nos espaços destaca a valorização do talento e competência das mulheres, bem como o reconhecimento de sua capacidade de liderança, além de trazer consigo uma abordagem mais inclusiva e sensível às questões de gênero. A expertise e vivência de cada mulher é fundamental para a criação de políticas mais eficazes e para a garantia de igualdade de direitos, promoção de políticas públicas voltadas para a proteção das mulheres vítimas de violência doméstica, bem como no combate à discriminação de gênero em outras esferas sociais. 

No âmbito político-institucional da Defensoria Pública no Brasil, o processo de aumento gradativo da participação política das mulheres defensoras públicas nos espaços de decisão institucional é um caminho que está sendo incentivado e apoiado pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep). A diretoria da Anadep é formada em sua maioria por mulheres. Há 3 anos a instituição possui três mulheres nos principais cargos de liderança: a presidência e duas vices presidências. Além disso, das 27 associações estaduais, 13 são presididas por mulheres.

É fundamental garantir que haja mais igualdade de oportunidades para as mulheres em todas as frentes de trabalho, em especial aos cargos de gestão, para que sua perspectiva e experiência contribuam para a mudança da cultura institucional. 

A ideia muitas vezes propagada de que as mulheres não querem ingressar na política ou não almejam assumir cargos públicos de chefia dentro das instituições que fazem parte é falsa. Contudo, é importante diagnosticar porque a Defensoria Pública Estadual no Brasil apesar de possuir cerca de 6.700 defensoras e defensores públicos na ativa nas 27 unidades, dos quais 52% são mulheres, tem, tão somente, 8 defensoras públicas gerais ocupando a direção institucional em apenas 8 unidades da federação (Acre, Bahia, Ceará, Mato Grosso, Minas Gerais, Piauí, Paraíba e Rio de Janeiro). 

Algumas respostas parecem mais óbvias. Os dados refletem o fenômeno da masculinização do comando e feminização da subalternidade. Esse fenômeno demonstra que, mesmo frente aos espaços conquistados pelas mulheres na sociedade, o poder de comando permanece fiel à lógica da cultura patriarcal. O baixo número da participação das mulheres está relacionado a um número negativo que o Brasil ocupa, qual seja, o 5º lugar no ranking da violência, e aqui a violência precisa ser entendida também por práticas cotidianas do universo patriarcal como o  “mansplaining” ou “manterrupting”.

Além disso, o caminho a ser percorrido pelas mulheres para chegar em cargos de gestão é muito mais árduo. As mulheres precisam do apoio de outras mulheres. A dupla jornada de trabalho e a falta de políticas de equilíbrio entre vida pessoal e profissional podem limitar a participação feminina nos altos cargos hierárquicos. Para isso, é necessário criar políticas e práticas que promovam a igualdade de oportunidades, garantindo a progressão profissional das mulheres e abordando as barreiras que podem impedi-las de atingir seu pleno potencial.

Mas há outro desafio que precisa ser enfrentado: reconhecer que, quando falamos de algum crescimento da presença de mulheres no comando, ainda assim não estamos falando de todas as mulheres. Afinal, embora as mulheres brancas tenham conquistado espaço em algumas áreas específicas, ainda é perceptível que a discussão de intersecção, raça e gênero está longe de ser alcançada.

É necessário ampliar a representatividade feminina de todas as mulheres em todas as áreas de atuação da Defensoria Pública. Na luta por igualdade, como assevera Nancy Fraser, nem todos os feminismos são iguais. 

A lógica de opressão social também se repete na instituição. As mulheres negras ainda enfrentam maiores desafios que as mulheres brancas em sua ascensão dentro da Defensoria Pública. Por isso, promover a diversidade de gênero e raça dentro do espaço público organizacional da Defensoria Pública é urgente. Não se trata apenas de uma questão de justiça social, é também uma necessidade para a efetividade da mudança cultural e social mais ampla, que implica em crescimento qualitativo de uma instituição que pretende assumir posição cada vez mais democrática.

O dia internacional das mulheres é momento de ampliar essas reflexões em todas as partes. O machismo institucional existe, todavia ele é sub-reptício e atinge de diferentes formas, as diferentes mulheres. Muitas vezes, está escondido em diversas condutas praticadas que são vistas com naturalidade no ambiente. A mudança só ocorrerá quando este olhar crítico for trazido para a formação profissional. A luta pela equidade de gênero nos espaços de comendo precisa do envolvimento de todas e de todos, porque a responsabilidade por construir uma sociedade justa e equilibrada é coletiva.

Notas_______________________

1 BIROLI, Flávia. Gênero e Desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 138.

2 Disponível em: <Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – Anamatra Mulheres divulga nota em apoio à política de equidade de gênero, em julgamento no CNJ>.

3 GONÇALVES, Camila de Jesus Mello. Igualdade de gênero no Poder Judiciário: uma proposta de ação afirmativa. Revista Direito e Sexualidade n. 1 (maio/2020). Acesso em: 08 ago.2022. 

4 FRASER, Nancy. Mercantilização, proteção social e emancipação: as ambivalências do feminismo na crise do capitalismo. Tradução de Natália Luchini. Revista Direito GV, São Paulo (jul-dez 2011), p. 617-634.

5 Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/03/relatorio-participacao-feminina-na-magistratura-v3-20-03-23-ficha-catalografica.pdf>.

6 Disponível em: http://www.enamat.jus.br/wp-content/uploads/2019/06/Relatorio_Pesquisa_magistradas.pdf.

7 Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/rela-negros-negras-no-poder-judiciario-150921.pdf>. A ANAMATRA incorporou, entre as suas ações institucionais, curso voltado às mulheres e homens negros de baixa renda para o concurso da magistratura trabalhista, denominado “Enegrecendo a Toga”. Disponível em: <https://www.anamatra.org.br/imprensa/noticias/31641-capacitacao-estimulara-ingresso-de-candidatas-e-candidatos-negros-de-baixa-renda-na-magistratura>.  

8 CONFORTI, Luciana Paula. O papel da Justiça do Trabalho no debate sobre a igualdade de gênero. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-abr-13/conforti-justica-trabalho-igualdade-genero>.

9 ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. São Paulo: Cia. das Letras, 2019, p. 42-43.

10 Habermas, J. (1992). “Further reflections on the public sphere” em Habermas and the public sphere de Craig Calhoun, p. 421-461. Cambridge: MIT Press p. 428.

11 Fraser, N. (1997a) “Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy” em Justice Interruptus: Critical Reflections on the “Postsocialist” Condition. New York: Routledge, p. 76.

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