Garantia do trabalho decente: dia Internacional dos Direitos Humanos e a Declaração de Filadélfia

2 de fevereiro de 2024

Luciana Paula Conforti Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra)

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O Dia Internacional dos Direitos Humanos, 10 de dezembro, simboliza a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948. Referido documento histórico representa um compromisso global de reconhecer e proteger os direitos fundamentais de todos os seres humanos, independentemente de sua origem, raça, gênero, religião ou qualquer outra característica.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos surgiu como uma resposta à necessidade urgente de estabelecer princípios universais que resguardem a dignidade e os direitos inerentes de cada indivíduo. Veio, ainda, definir os direitos e liberdades fundamentais a serem garantidos, apesar de tal instrumento não possuir força jurídica obrigatória e vinculante. 

O documento é considerado um marco na história dos direitos humanos, foi traduzido em mais de quinhentos idiomas e inspirou as constituições de muitos Estados e democracias. Elaborada por representantes de todas as regiões do mundo, de diferentes origens jurídicas e culturais, a Declaração Universal foi proclamada como norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações, estabelecendo, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos. Em seu preâmbulo, o documento reafirma o reconhecimento do progresso social e de melhores condições de vida como postulados de uma liberdade mais ampla, considerando a relação entre igualdade, liberdade e trabalho. Já no art. 1o, a Declaração Universal dos Direitos do Homem dispõe que: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade”. 

Nesse sentido, a Declaração dispõe sobre o direito ao trabalho, inserindo a livre escolha do emprego, em condições justas e favoráveis, e a proteção em face do desemprego. Prevê, ainda, igual remuneração para igual trabalho, sem distinção (por motivo de sexo, raça ou nacionalidade) e o pagamento de remuneração justa e satisfatória, que assegure ao trabalhador, junto da sua família, existência compatível com a dignidade humana e a inclusão de outros meios de proteção social (art. 23).    

Em 1944, os delegados da Conferência Internacional do Trabalho adotaram a Declaração de Filadélfia que, como anexo à sua Constituição, consolida desde então a Carta de Princípios e Objetivos da Organização Internacional do Trabalho. Esta Declaração serviu de referência para a Carta das Nações Unidas de 1946 e para a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. 

A Declaração de Filadélfia reafirmou o princípio de que a paz permanente só pode estar baseada na justiça social e estabeleceu quatro referenciais fundamentais, que constituem os valores e princípios básicos da Organização Internacional do Trabalho até hoje: que o trabalho deve ser fonte de dignidade; que o trabalho não é mercadoria; que a pobreza, em qualquer lugar, é uma ameaça à prosperidade de todos; e que todos os seres humanos têm o direito de perseguir o seu bem estar material em condições de liberdade e dignidade, segurança econômica e igualdade de oportunidades.  

Entre os traços fundamentais do “Espírito de Filadélfia”, destaca-se a dignidade humana como inerente a todos os membros da família e base da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Nesse contexto, “o princípio da dignidade obriga a ligar os imperativos da liberdade e da segurança”, não só a segurança física, mas também “a segurança econômica suficiente para liberar os seres humanos do terror e da miséria”. 

Segundo a OIT, o conceito de trabalho decente ou digno resume as aspirações do ser humano no domínio profissional e abrange vários elementos: oportunidades para realizar um trabalho produtivo com uma remuneração equitativa; segurança no local de trabalho e proteção social para as famílias; melhores perspectivas, desenvolvimento pessoal e integração social; liberdade para expressar as suas preocupações; organização e participação nas decisões que afetam as suas vidas; e igualdade de oportunidades e de tratamento para todas as mulheres e homens.

A dignidade no trabalho deve ser considerada como “mínimo ético irredutível”, assim como os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, a fim de que mais pessoas possam se envolver na permanente (re)construção do mundo do trabalho com menos opressão, exploração e sem colonialismos. Há necessidade de maior engajamento nas lutas pela possibilidade de um mundo em que a acumulação do capital não esteja completamente desconectada do absoluto respeito à dignidade humana.

Todos esses valores e princípios foram incorporados pela Constituição de 1988. Segundo os princípios e regras jurídicas previstas nas normas internacionais e na Constituição, o Direito do Trabalho deve regular a execução do trabalho digno, considerado como aquele protegido por “patamares civilizatórios mínimos”, de conteúdo “indisponível absoluto”, desconsiderando-se “a flexibilização e a desregulamentação de direitos”.  

Tendo em vista os direitos fundamentais previstos na Constituição, principalmente o direito fundamental ao trabalho digno e o direito fundamental de não ser escravizado, a correção normativa pelo controle de constitucionalidade atende à exigência de interpretação da lei no contexto em que deve ser aplicada. 

A Constituição de 1988, além de ter como fundamentos a “dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho e da livre iniciativa” (art. 1o, III e IV), prevê como objetivos fundamentais a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária” e a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outra forma de discriminação” (art. 3o, I e IV).  

Como ensina Gabriela Neves Delgado, “percebe-se, na seara constitucional, o destaque dado ao trabalho, sobretudo se relacionado aos seguintes valores e princípios: dignidade da pessoa humana, justiça social e valor social do trabalho”. 

As normas internacionais de direitos humanos também devem ser consideradas de forma concorrente e cumulativa, como complemento à legislação interna, para a aplicação da norma mais favorável à proteção da pessoa, face ao princípio pro homine aplicável no direito internacional, adotando-se a jurisprudência das Cortes de Direitos Humanos para a atualização da jurisprudência nacional.

O Brasil é um dos membros fundadores da OIT e deve observar, assim como os demais países-membros que integram a Organização das Nações Unidas (ONU), a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que traça ações para a comunidade internacional (governos, setor privado e sociedade civil), divididas em 17 objetivos (ODS) e 169 metas. Um desses compromissos é o Objetivo 8: “Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos”. O trabalho decente concretiza várias metas do citado diploma, destacando-se o item “8.8 – Proteger os direitos trabalhistas e promover ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores, incluindo os trabalhadores migrantes, em particular as mulheres migrantes, e pessoas em empregos precários”. 

O trabalho decente está no centro de todas as discussões da OIT e da ONU para o desenvolvimento sustentável. O crescimento econômico deve incluir a criação de postos de trabalho em condições que permitam a respectiva execução com total liberdade, segurança e dignidade.

Por ocasião do encerramento do II Fórum da Organização dos Estados Americanos: Desafios Atuais para o Poder Judiciário e o Ministério Público, realizado na capital do Estado do Pará, no período de 29 de novembro a 1o de dezembro de 2023, houve a divulgação da “Carta de Belém”, subscrita pelas entidades representativas da Magistratura e do Ministério Público (Ajufe, Ajufe Argentina, AMB, Anamatra, ANPR, ANPT, Apamagis e Conamp), com o reconhecimento de que, entre outras pontuações, “mostra-se imperativa a afirmação plena dos direitos humanos sociais, o que antagoniza com perspectivas e posturas reducionistas quanto ao campo de incidência das normas promotoras do trabalho decente”. O documento também destacou que a “democracia, justiça, igualdade, inclusão e/ou não discriminação, pilares da dignidade humana, necessitam de proteção permanente e, para sua concretude, é essencial que a Magistratura e o Ministério Público permaneçam independentes, fortes e atuantes para defesa de todas as prerrogativas inerentes à proteção dos direitos humanos (…)”.

Nesse sentido, oportuna a divulgação da “Carta de Belém” no mesmo período em que se comemora o Dia Internacional dos Direitos Humanos, com destaque da dignidade humana e do trabalho decente como postulados da democracia.   

Notas__________________________

1 Disponível em: <https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/>. Acesso em: 04 jul.2018.

2 Ibid.

3 Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Declara%C3%A7%C3%A3o-Universal-dos-Direitos-Humanos/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.html>. Acesso em 10 jul.2017.

4 Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/content/hist%C3%B3ria>. Acesso em: 19 nov.2023.

5 Ibid., p. 21-22.

6 Disponível em: <http://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-decente/lang–pt/index.htm>. Acesso em: 17 nov.2023.

7 OIT: Origens, funcionamento e atividade, p. 12. Genebra: OIT. Disponível em: <http://www.ilo.org/public/ portugue/region/eurpro/lisbon/pdf/o_que_oit.pdf>. Acesso em: 01 nov.2023.

8 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 49.

9 Ibid., p. 194-195.

10 CONFORTI, Luciana Paula. Direito fundamental de não ser escravizado no Brasil. Belo Horizonte: RTM, 2022.

11 DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTR, 2006, p. 79.

12 Disponível em: <https://nacoesunidas.org/pos2015/ods8/>. Acesso em: 25 out.2020.

13 Documento disponível em: <https://www.anamatra.org.br/images/DOCUMENTOS/2023/CARTA_DE_BEL%C3%89M_FINAL.pdf>. Acesso em: 11 dez.2023.

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