Estado fiscal brasileiro contemporâneo

5 de novembro de 2020

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Reconfiguração entre poder tributário e responsabilidade estatal face à pandemia de covid-19

A atual crise de saúde sanitária provocada pela pandemia da covid-19 desencadeou uma retração sem precedentes da economia mundial, culminando em um grave desequilíbrio financeiro e orçamentário na totalidade das economias globalizadas, e despertou a atenção para novas reflexões acerca do papel do Estado Nação contemporâneo, trazendo à evidência a premência de reconfigurar um modelo que seja capaz de responder com rapidez à situações atípicas de vulnerabilidade, tanto dos cidadãos quanto dos mercados econômicos, com o menor sacrifício para ambos.

No contexto pandêmico, o Estado assumiu o protagonismo isolado, e, sobre ele foram depositadas todas as esperanças de solucionar e minimizar os efeitos deletérios provocados pela pandemia. É esperado que o Estado não apenas intervenha por meio de medidas regulatórias e incentivos tributários, mas que assuma encargos financeiros anteriormente não previstos no orçamento público para atender às novas demandas oriundas da responsabilidade inarredável de proteção e prestação dos direitos fundamentais à saúde, ao trabalho e à livre iniciativa.

No caso brasileiro, mesmo em situação de normalidade econômica, os contribuintes, especialmente do setor empresarial, constantemente argumentam que a alta carga tributária incidente sobre as atividades de produção de bens e serviços inviabiliza o crescimento da economia e a geração de empregos no País. Somado a esse fato, análises e estatísticas demonstram que o modelo tributário brasileiro, estruturado em elevada carga tributária aplicável aos tributos sobre o consumo e mais branda sobre a riqueza enceraria uma equação de injustiça tributária que mereceria ser corrigida pela pena do legislador. Em síntese, o sistema tributário brasileiro oneraria de forma desmedida tanto o empresariado quanto os consumidores, especialmente os mais pobres.

Assim, na conjuntura de crise econômica-sanitária atual o empresariado brasileiro apela para que o Estado alivie a carga tributária a fim de não aniquilar as empresas que fazem parte dos setores mais afetados pela redução do faturamento e lucro. Lado outro, os cidadãos exigem do Estado ações e soluções imediatas que só podem ser viabilizadas com a assunção de novas responsabilidades, que por sua vez serão concretizadas por meio do dispêndio de mais recursos financeiros.

Eis o dilema. O País vivencia uma situação orçamentária dramática em razão da pressão pela redução da carga tributária, que embora seja pauta antiga ganhou maior ênfase nos últimos meses com a propositura das propostas de emenda constitucional (PEC) de números 45/2019 e 110/2019 e do projeto de lei nº 3887/2020, somado ao inafastável dever de socorrer os milhões de cidadãos que foram afetados pela crise oriunda da pandemia, sejam contribuintes ou empresariado, ao mesmo tempo em que precisa empregar vultuosas quantias para evitar o colapso dos sistemas de saúde e econômico. A tragicidade do quadro se completa pela certeza de que os mercados consumidores internacionais têm como premissa adquirir produtos apenas de países onde há significativa redução de registros e controle da covid-19.

É incontroverso que a tributação faz parte do problema e da solução do problema, pois o Estado fiscal, dotado da qualidade intrínseca de legitimidade, é indispensável para manutenção das sociedades contemporâneas. Não obstante exista espaço para o desenvolvimento de teorias que advogam a inexistência de limite financeiro para o financiamento do próprio Estado, os tributos continuam a ser a principal fonte de renda que financia as estruturas política, judiciária, administrativa e subsidia as variadas funções a cargo do Estado fiscal brasileiro.

A crise econômica e sanitária mundial direcionou os holofotes para a expectativas acerca dos deveres do Estado brasileiro contemporâneo e dos direitos dos contribuintes, restando evidente que a opção por um modelo pautado na mínima intervenção regulatória e no liberalismo econômico é não apenas inadequada, mas insuficiente para lidar com os problemas de um país em desenvolvimento como o Brasil. Destarte, seja por razões exógenas ou endógenas, a tributação, notadamente durante a pandemia de covid-19 passou a ser enxergada com um viés mais humanitário, o que sugere, ainda que por força das circunstâncias, a valorização das medidas adotadas pelo Executivo Federal (notadamente pela concentração de receita em detrimento dos demais entes) de aplicação de recursos e investimentos em direitos associados à saúde e preservação da economia.

Mesmo em países como os Estados Unidos, em que o Estado não tem a obrigatoriedade de arcar com os custos de um programa de saúde universal e irrestrito a todos os cidadãos, a retomada da economia depende exclusivamente da forma como a crise sanitária está sendo abordada porque seu enfrentamento atende aos princípios de ordem moral e humanitários.

Apenas um Estado forte alimentado por tributos justos será capaz de conjugar e resguardar a existência de interesses e direitos tão difusos quanto legítimos característicos da sociedade de risco. Nessa senda, a reconfiguração da relação entre poder tributário e responsabilidade estatal tem como corolário a compreensão das expectativas dessa forma de Estado que exsurge no pós-pandemia de covid-19 e dos custos necessários para fazer frente às despesas de gratuidade de saúde, educação, segurança pública, previdência e assistência social a uma população de 210 milhões de pessoas.

A equação que encerra justiça tributária se realiza com base tanto na justa arrecadação quanto no gasto justo. Entretanto, por razões diversas (corrupção, ineficiência da prestação de serviços estatais, má gestão de recursos públicos) grande parcela dos contribuintes enxerga com desconfiança o exercício do poder tributário; impera a máxima de que o Estado é usurpador do patrimônio privado e que a atuação empresarial deve ser orientada ao mínimo recolhimento de tributos. Sem adentrar no tema do planejamento tributário e nos arranjos societários e contratuais para permitir a economia de impostos, é notória a incoerência entre o aumento das responsabilidades e dos gastos estatais, especialmente durante a pandemia de covid-19, e a tendência de que existe um direito pré-adquirido à menor carga tributária.

Avançando no cenário pós-pandemia de covid-19, a partir da experiência, é evidente que a imprevisibilidade da sociedade de risco não pode ser eliminada, e que não há como conjugar liberalismo econômico com a realização de direitos e garantias fundamentais aos cidadãos, a conta não fecha. Também é evidente que o governo (em suas diferentes esferas) precisa melhorar a relação fisco/ contribuinte para legitimar a manutenção e/ ou aumento da carga tributária.

Os extremos, mínima carga tributária e máxima carga tributária, são igualmente ruins, e toda equação que não possuí como premissa a justa distribuição da arrecadação e do gasto do produto arrecadado através dos impostos não pode produzir outro efeito deletério, senão a própria miséria da população e do País.

Nesse cenário, o principal desafio reside em reconfigurar a relação entre poder tributário e responsabilidade estatal por meio da criação de instrumentos que permitam o exercício da cidadania fiscal.

Notas___________________________________________

1 Algumas medidas adotadas pelo Governo Federal para compensar a redução de receita ocasionada pelas medidas de fechamento do comércio e redução do consumo foram zerar a alíquota do IOF, prorrogar o vencimento dos tributos das empresas optantes pelo SIMPLES, reduzir alíquotas específicas do IPI, postergar pagamentos de tributos devidos à União.

2 Human Development Report 2019/ ONU. http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr2019.pdf.

3 Modern Money Theory (MMT), inaugurada por Warren Mosler e por L. Randall Wray.

4 Nota sobre o nascimento do liberalismo.

5 https://auxilio.caixa.gov.br/#/inicio.

6 Conforme destacado pelo professor Sergio André Rocha: https://www.conjur.com.br/2020-mar-21/sergio-rocha-covid-19-exige-estado-forte-provido-tributos-justos.