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Fatos que antecederam a morte do Presidente Getúlio Vargas

31 de maio de 2008

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Em princípios de agosto de 1953, quando já exercia no Ministério do Trabalho o cargo de Inspetor do Trabalho, passei a exercer a função de Delegado Regional da cidade de Santos – com jurisdição em todo o litoral do Estado de São Paulo.

No ano seguinte, ao final de junho, fui chamado pelo secretário particular do Presidente da República, Roberto Alves, para receber, segundo ele, instruções de serviço diretamente de Getúlio Vargas.

Estranhando o fato, dado o inusitado da minha função e a subordinação aos hierarcas administrativos intermediários até o Presidente, compareci acompanhado de Roberto à sua presença e, em seguida aos cumprimentos, ele foi logo dizendo o que transcrevo na essência:

“Tu vais receber instruções de como agir na jurisdição da tua função e este assunto ficará restrito apenas a ti, Roberto e eu. Tenho recebido informações nada tranqüilas no que se referem aos movimentos trabalhistas, que se mobilizou e agitou com reivindicações salariais difíceis de serem superadas. Os trabalhadores estão cobertos de razão em face do aumento do custo de vida e a inflação, porém, essas questões serão naturalmente resolvidas através da conciliação promovida pelo Ministério do Trabalho ou pela Justiça do Trabalho.

Ocorre, entretanto, que no setor da Marinha Mercante, o governo vai enfrentar dificuldades, não devidas aos líderes dos marinheiros – apesar de atuantes e bem organizados com a direção do presidente do Sindicato da Marinha Mercante, comandante Emílio Bonfante Demaria –, mas, sim, devidas à ação premeditada de alguns setores da Marinha de Guerra que, orientados pelo Almirante Pena Boto, estão insuflando com intuitos escusos alguns oficiais das Capitanias dos Portos, principalmente a de Santos, onde, coincidentemente, o Sindicato da Marinha Mercante centrou o comando do movimento reivindicatório.

Acontece que a Capitania do Porto de Santos e a Delegacia do Trabalho Marítimo estão sob a direção do Capitão de Mar e Guerra Bertino Dutra da Silva, que atende politicamente à orientação do Almirante Pena Boto e está se desmandando com atitudes reacionárias e descabidas contra os trabalhadores da Marinha Mercante. O fato me preocupa pelas reações e conseqüências que poderão advir de uma greve geral nos portos, que somente será evitada se for obtida uma negociação conciliadora das reivindicações – o que só será possível com o afastamento do Capitão dos Portos das negociações.

Administrativamente é perfeitamente viável a sua demissão e substituição por outro oficial da Marinha responsável e confiável, mas no momento não é politicamente conveniente. E aí é que tu entras.

Esse Bertino Dutra é um dos tenentes remanescentes da Revolução de 30. Chegou a ser cogitado na ocasião pelo Juarez Távora para assumir a Interventoria no Estado do Rio Grande do Norte, mas foi vetado pelos revolucionários civis locais, e eu pessoalmente não sei como e porque se desentendeu, durante esse tempo, com os demais companheiros a ponto de ter ficado alijado de qualquer posição.

Tens que ter cautela e muito tato, começando por convidá-lo para uma reunião para tratar da possibilidade de tentar a conciliação com os marítimos. Estejas certo de que ele vai encrespar e até proibir a tua participação, alegando que a competência é da Delegacia Marítima e não permitindo a tua ingerência na questão.

Bem, tens delegação do Ministro do Trabalho e minha, portanto, mãos à obra e estou certo de que te desincumbirás bem desta tarefa.”

De volta a Santos, tomei conhecimento do manifesto que o Capitão dos Portos já  havia divulgado anteriormente, que, com demonstração de intolerância reacionária, afirmava que não permitiria e reprimiria de todas as formas a greve da Marinha Mercante nos portos sob a sua jurisdição.

Diante da realidade, tentando abrir espaço para um entendimento, enviei um ofício da Delegacia do Trabalho convidando-o para uma reunião no intuito de tratar da questão que envolvia a propalada greve dos marítimos.

A reação do Capitão dos Portos não se fez esperar. Incontinente ao recebimento do meu ofício, respondeu também através do ofício no 433, de 04/08/1954, em termos ásperos, intimando-me a não me imiscuir nos assuntos dos marítimos, cuja competência absoluta – conforme suas palavras – era inteiramente sua. Assim, o primeiro intento havia dado o resultado esperado.

Propositadamente, deixei passar uns dias e solicitei uma audiência para esclarecer o assunto, recebendo resposta, através do tenente-ajudante da Capitania, de que não tinha nada a conversar sobre os problemas dos marítimos, cuja competência era da alçada da sua repartição.

Voltei à carga e insisti em falar-lhe ao menos por telefone. Decorridos vários dias, depois de muita insistência, ele mandou dizer que se fosse para falar sobre os marítimos, não teria nada para conversar. Retruquei dizendo que desejava explicar a minha posição e pedi para me receber na sua repartição, a fim de ouvir e deixar esclarecida a situação. Ini­cialmente opôs obstáculos, mas acabou cedendo marcando encontro para dias depois.

O encontro foi tenso. Recebendo-me, não se levantou e sem cumprimentos mandou que eu sentasse, dizendo: “O ofício que lhe enviei é claro, a competência do trato administrativo e as relações trabalhistas com os marítimos são da minha competência, portanto, o senhor está impedido de imiscuir-se nos assuntos relacionados com o propalado movimento grevista, que está sendo fomentado por agitadores comunistas, e eu não vou permitir a baderna e a esculhambação, como pretende esse presidente do Sindicato, o tal de Emílio Bonfante. Portanto, sobre esse assunto não temos nada para conversar” – em seguida se levantou, que­rendo dar a entrevista por encerrada.

Levantei-me, também, e me fixando nos seus olhos, disse: “Comandante, o senhor está esquecendo uma coisa muito importante: eu e o senhor estamos submetidos à hierarquia de duas autoridades superiores – o Ministro do Trabalho e o Presidente da República. O senhor pode tomar a atitude que julgar melhor, mas eu tenho de cumprir as ordens que recebi tanto do Ministro do Trabalho Interino quanto do Presidente. Sei que a situação é difícil mas, antes de descer a Santos, estive em São Paulo com o General comandante da 2a Região que deu instruções ao Comandante do Batalhão aqui em Santos, coronel Boanerges, que se for o caso e necessário, para enfrentar qualquer situação difícil com os marítimos, tenho ordens para requisitar tropa do Exército para garantir a minha atuação e enfrentar a greve, que está na iminência de eclodir. Portanto, se não houver conciliação, teremos a paralisação da Marinha Mercante em todos os portos do país, o que tem de ser evitado a qualquer custo.

Informo que já me antecipei e tive um encontro com o presidente do Sindicato Nacional da Marinha Mercante, Comandante Bonfante, e este declarou peremptoriamente que, em virtude do manifesto que o senhor divulgou afirmando que a greve é de agitação e de inspiração comunista, ele recusa participar em reunião com o senhor, e nestas circunstâncias, face as ordens que recebi, não tenho outra alternativa senão a de promover reuniões com o comando da greve para tentar, de qualquer forma, conseguir a conciliação. Lamento muito o que ocorre, tornando necessário o seu afastamento das reuniões, o que é exigência intransponível e absoluta do Comandante Bonfanti, deixando o senhor fora dos entendimentos para a conciliação.”

Enquanto apressadamente falava da situação e das exigências dos dirigentes do Sindicato dos Marítimos, as feições do Capitão dos Portos iam se avermelhando,  demonstrando uma irritação que poderia se transformar em algo imprevisível, razão que me levou a lhe dizer: “Espero que o senhor compreenda a minha posição”, e sem mais delongas, não dando tempo para qualquer pronunciamento seu, me retirei do seu gabinete.

Ao chegar de volta ao gabinete da Delegacia do Trabalho, encontrei à minha espera o presidente do Sindicato dos Operários Portuários, José Gonçalves, e o presidente do Sindicato dos Empregados na Administração dos Serviços Portuários de Santos, Jorge Pacheco, que vinham solicitar a minha intercessão perante a Cia. Docas e o apoio do Governo na conciliação com a direção da empresa para conseguir os pagamentos dos aumentos de salários concedidos em acordos anteriores, a fim de evitar a paralisação dos trabalhos, pois as categorias já haviam decidido pela greve em assembléias, caso não houvesse o imediato apagamento.

Depois de ouvi-los e em suas presenças, telefonei para o Palácio do Catete. Falei com o Secretário da Presidência relatando o ocorrido com o Capitão dos Portos, o que por certo atendia, a princípio, a incumbência recebida, ao passo
que relatava a nova situação dos portuários, que se encontra­vam na iminência de greve, motivo que levava a solicitar audiência com o Presidente, a fim de tratar da nova questão que eu julgava relevante pelas conseqüências e semelhanças de greve que envolviam os assuntos em questão.

No fim do expediente desse mesmo dia, Roberto Alves retornou com a recomendação do Presidente para que eu fosse ao Rio relatar o que ocorria.
Dois dias após, no Catete, Getúlio Vargas me recebeu na companhia de seu secretário. Dei as informações do que importava sobre o Capitão dos Portos e os entendimentos com o Sindicato dos Marítimos, e sugeri, para evitar a deflagração da greve dos portuários, que ele interferisse diretamente com o presidente da Companhia Docas de Santos, o seu particular amigo, Dr. Guilherme Guinle, para que a empresa desse uma solução urgente no acordo feito com os Sindicatos referidos.

Em seguida, depois de minha exposição, o Presidente disse estar satisfeito com as démarches feitas, tanto com o Capitão dos Portos, afastando-o das reuniões, quanto nos entendimentos com o comando de greve dos marítimos, o que propiciou o acordo que seria formulado e assinado no Ministério do Trabalho em conjunto com o Ministério de Viação e Obras Públicas e os Sindicatos interessados. Quanto aos portuários, deu-me instruções para que procurasse o Diretor Tesoureiro da Cia. Docas, Dr. Washington de Almeida, que já estava a par do assunto e com instruções para resolver a questão. A seguir despediu-se, cumprimentando-me pela atuação e pelos resultados alcançados.

Voltei para Santos e nos primeiros dias de agosto de 1954 tive a satisfação de saber do acordo assinado com o Sindicato dos Marítimos que evitou a greve, além de constatar que os portuários estavam recebendo os respectivos pagamentos, tudo graças a benfazeja interferência do Presidente Vargas.
Entretanto, enquanto eu me rejubilava com os resultados colhidos com a minha intercessão nos acordos realizados, principalmente pelos agradecimentos recebidos e expressos em correspondências dos presidentes dos sindicatos portuários, datados de 06 e 07 de agosto – cujos originais se encontram em meu poder, e que fazem parte do meu arquivo particular – infeliz e tragicamente, no alvorecer do dia 24 de agosto fui acordado com a lamentável notícia do suicídio do presidente Getúlio Vargas, o maior estadista que o Brasil produziu.

Até hoje, decorridos 54 anos daquela data, ainda não me conformo com a forma de sua despedida da vida. Sei do drama que o levou à tragédia, das angústias, sofrimentos, traições, desilusões, dissabores, ingratidões e do desespero por não querer resistir, o que por certo levaria o país a uma guerra sangrenta, face às traições declaradas de alguns generais, almirantes e brigadeiros, inclusive o próprio Ministro do Exército, general Zenóbio da Costa, que às vésperas do fatídico 24 de agosto, já havia se bandeado a favor do também golpista, vice-presidente Café Filho.

A revolta popular que eclodiu em seguida à notícia de sua morte – com a depredação das redações dos jornais “O Globo”, “Correio da Manhã” e, em especial, a “Tribuna da Imprensa”, do jornalista Carlos Lacerda – deixou claro o caos que ocorreria caso houvesse resistência da parte do presidente Getúlio Vargas, que inegavelmente preferiu o suicídio ao sacrifício do povo que tanto amou e por quem era também imensamente amado.

Com a morte do Presidente, o enraivecido Capitão dos Portos, Bertino Dutra da Silva, iniciou uma solerte e insidiosa campanha contra mim, na qualidade de Delegado do Trabalho, que ousei – segundo suas expressões – desafiá-lo e excluí-lo das reuniões na feliz conciliação da greve da Marinha Mercante.
Assim é que, logo após o enterro do Presidente, nomeado Ministro do Trabalho o adesista senador petebista Alencastro Guimarães, Bertino Dutra iniciou o envio de ofícios – algumas cópias se encontram em meu poder – a diversas autoridades dos Ministérios do Trabalho e da Justiça, em especial ao Departamento Federal de Segurança Pública e ao Departamento de Ordem Política e Social da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, com denúncias maldosas e mentirosas, acusando-me de ter, na direção da repartição, promovido reuniões com comunistas e agitadores, insuflando a deflagração de inúmeras greves nos setores marítimos, na indústria do trigo, da estiva e dos portuários.

O resultado das suas malévolas aleivosias não se fez esperar. De nada adiantou a intervenção do saudoso, ilustre e digno senador Alberto Pasqualini perante o seu colega Senador e Ministro do Trabalho em meu abono. Prevaleceram as infâmias do malfadado Capitão de Mar e Guerra que, com suas mentiras e despautérios, propiciou através dos órgãos de segurança as acusações em meu desfavor.

Decorridos 47 dias da morte do presidente Getúlio Vargas, no dia 10 de outubro de 1954, sem acusação formalizada e sem direito de defesa, fui demitido das funções da chefia e do cargo de Inspetor do Trabalho, com a incriminação de agitador e comunista.

Passados mais de 50 anos da minha demissão, sou hoje conhecedor das tramas, misérias, mentiras e infâmias que cavilosamente inventaram e arrolaram contra mim.

As informações que requeri e que me foram fornecidas, constantes dos relatórios extraídos dos arquivos da Abin – Agência Brasileira de Inteligência –, ex-SNI, e do Dops da Secretaria de Segurança de São Paulo, atestam as atitudes e ações engendradas pelo raivoso Capitão dos Portos em conluio com maldosos agentes de segurança, que propiciaram as injustiças e violências sofridas, que apesar de tudo não conseguiram abater o meu ânimo e caráter.

As incontáveis prisões, o exílio, a ausência da família, as humilhações e outras desgraças foram suportadas sempre com a esperança de quem tem fé e acredita em si próprio.

Pior aconteceu com o presidente Getúlio Vargas, que deu tudo de si em benefício da Nação e do seu povo, preferindo morrer, sacrificando sua vida, para evitar a desgraça de uma revolução sangrenta entre irmãos.