Foro por prerrogativas e a estabilidade institucional

9 de abril de 2024

Compartilhe:

“Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício.” Tal era a redação da Súmula 394 do Supremo Tribunal Federal, editada na Sessão Plenária de 3 de abril de 1964, logo após o golpe de 31 de março daquele ano, e alterada em 1999 pelo STF.

As linhas jurisprudenciais são parte da história da Suprema Corte. Debatendo o foro de prerrogativa, o ministro Victor Nunes Leal julgou procedente a Reclamação 473 , em favor de Mário Pinotti, Ministro da Saúde de 1957 a 1960, durante os governos Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. A causa foi proposta por Evandro Lins e Silva, que ocupava a Procuradoria Geral da República.

A Constituição de 1946, no art. 92, previa que “os Ministros de Estado serão, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal, e, nos conexos do Presidente da República, pelos órgãos competentes para o processo e julgamento deste”. O art. 101, por sua vez, definia a competência do Supremo para julgar o Presidente da República nos crimes comuns e, inalterada pela Emenda Constitucional 16 de 1965, os Ministros de Estado e membros de alguns tribunais.

O provimento da referida Reclamação para manter a competência do STF, mesmo após o reclamante ter deixado cargo de Ministro da Saúde, relembra a concessão da ordem de Habeas Corpus 33.440 de 1955 em favor de Ademar de Barros, para que fosse julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, e o precedente do HC 38.409 em favor do ex-governador do Paraná Moisés Lupion.

Outro precedente citado foi o HC 35.501, de 1957 (RTJ 4/63), de relatoria do Ministro Ary Franco em favor do Juiz Aníbal Quintão, cuja ementa definia a prerrogativa mesmo após o fim do mandato: “Praticado o crime na função e em razão da função, embora deixando depois o cargo, deve subsistir o foro por prerrogativa da função”. A decisão de Victor Nunes Leal na vigência da Constituição de 1946 tem fundamentos inalterados pela Constituição de 1988: “(…) em razão do interesse público do bom exercício do cargo, e não do interesse pessoal do ocupante que deve subsistir, que não pode deixar de subsistir a Jurisdição especial, como prerrogativa da função, mesmo depois de cessado o exercício”.

Em 2001, o Supremo alterou a jurisprudência e cancelou a Súmula 394. No INQ 687-4/SP, o Ministro Sydney Sanches recapitula a posição do Supremo até aquele momento, destacando precedente do Ministro Moreira Alves seguindo o Ministro Octavio Gallotti no HC 69.156-SP, para quem a cassação de Jabes Pinto Rabelo como Deputado Federal extinguiria a competência do STF:

“26. Quando a Súmula foi aprovada, eram raros os casos de exercício de prerrogativa de foro perante esta Corte.

Mas os tempos são outros. Já não são tão raras as hipóteses de Inquéritos, Queixas ou Denúncias contra ex-Parlamentares, ex-Ministros de Estado e até ex-Presidente da República. (…)”

Apesar da revogação da Súmula ter sido unânime, importa aprofundar o voto de Sepúlveda Pertence, que pede a edição de uma nova Súmula, mantendo a prerrogativa de foro. O Ministro então compara o tratamento dado ao tema por outros sistemas legais: “Na Itália, por exemplo, a redação primitiva do art. 134 da Constituição adstringia a competência da Corte Constitucional para julgar os Ministros de Estado aos crimes ministeriais, os reati ministeriali: na expressão de Zagrebelsky, aqueles che possono compiersi solo da chi è ministro e perchè è ministro (…) A Constituição da Espanha, é certo, tal como a nossa, não restringe aos delitos propter officium a competência da Sala Penal do Tribunal Supremo para os processos criminais contra Deputados e Senadores (art. 71, 3) ou contra o Presidente e os demais membros do Governo (art. 102, 2)”.

Sepúlveda lembra que “nas duas vezes que se quis restringir o foro especial, tornou-se expresso que determinados ex-dignitários não teriam mais a prerrogativa”. A súmula editada após o golpe de 64 havia consolidado a jurisprudência então estável há um século. 

No ano seguinte à publicação do julgado, o Congresso Nacional editou a Lei 10.628 para manter a prerrogativa centenária, definindo que a ação de improbidade deveria ser proposta no mesmo foro da competência criminal.

Os conflitos de entendimento do STF e do Legislativo seguem em diversos temas. A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucional, ADI 2.797, contra a Lei 10.628/02, relatada pelo Ministro Sepúlveda Pertence, que votou pela inconstitucionalidade da alteração da interpretação que, no seu entender, seria como uma usurpação da competência do STF. 

Eros Grau discordou e julgou parcialmente procedente a ação. Além disso, fez distinção de quando poderá ou não o Legislativo alterar a lei, em razão de posicionamento do STF: “Há de ficar bem-marcado, de todo modo, o que afirmou Loewenstein: O Poder Legislativo pode exercer a faculdade de atuar como intérprete da Constituição, para discordar de decisão do Supremo Tribunal Federal exclusivamente quando não se tratar de hipóteses nas quais esta Corte tenha decidido pela inconstitucionalidade de uma lei, seja porque o Congresso não tinha absolutamente competência para promulgá-la, seja porque há contradição entre a lei e um preceito constitucional.”

O Ministro Gilmar Mendes votou pela improcedência total de ação do Ministério Público sobre prerrogativa além da ocupação do cargo, dando exemplos de utilização política e de perseguição no uso de ações de improbidade. Ao fim, em 2005, o STF, por maioria, julgou inconstitucional a prerrogativa de foro estabelecida no art. 84 do CPP.  

O tema deverá ser revisitado. Se rara era a implicação de ex-Presidente em processos criminais, e em 1964 foi necessária inclusive a edição da Súmula para a proteção de ex-Presidentes como Juscelino Kubitschek, como destacara o Ministro Carlos Velloso, nos últimos 10 anos dois ex-Presidentes foram presos, e há denúncia contra o ex-Presidente Jair Bolsonaro por crimes de abolição violenta do Estado de Direito democrático (art. 359-L do CP) e de golpe de Estado (art. 359-M do CP). Crimes que só puderam ser tentados em função do exercício do cargo. 

O ex-Juiz Sérgio Moro, declarado parcial pelo Habeas Corpus 164.493/PR utilizou do cargo para sequestrar, em um processo fraudulento, o atual Presidente da República. Utilizou-se do processo para condenar Luiz Inácio Lula da Silva com consequências irreparáveis – mesmo anulado o processo. O “franchising carioca” da Lava Jato prendeu o ex-presidente Michel Temer, que após foi absolvido de todas as acusações em Brasília.

Como apontei no livro Geopolítica da intervenção, a prisão de Delcídio do Amaral e a imposição de tornozeleira em Aécio Neves mostram que o STF não é lugar tão seguro, em certos momentos históricos, tendo permitido abusos. E ações que geraram esse caos, ataques ao Legislativo com ordens de busca, aprovação de ilegalidades de lava-jatistas e idas e vindas em relação a presunção de inocência, que gerou a inclusão em pauta do HC de Lula e não das ADCs 43, 44 e 54, possibilitando sua prisão. 

Todavia, é indiscutível que o processo histórico seria mais estável se não houvesse o Supremo alterado a jurisprudência centenária sobre o foro de prerrogativa. É o momento de o STF revisitar o tema, mantendo o foro de prerrogativas mesmo após o exercício do cargo para atos ocorridos durante o exercício. Não é caso de o Supremo omitir-se dos processos referentes aos fatos ocorridos durante o exercício do mandato. Que se criem estruturas necessárias para que os tribunais cuidem desses processos e se estabilizem as instituições. 

Notas_________________________

1 RCL 473 primeira, DJ 19/11/1964, RTJ 22/47.

2 “Volto a repetir, Victor estava diante de fatos especiais e raciocinou da forma que Vossa Excelência mencionou longamente. Hoje, não temos essas mesmas circunstâncias. Não temos esses mesmos fatos. Felizmente, vivemos hoje uma democracia eficaz neste País, sob esse aspecto. Tribunais livres, decidindo com a maior liberdade; um Ministério Público que se aperfeiçoa, cada vez mais. De maneira que – apenas para dar resposta a essa indagação, a essa questão posta por Vossa Excelência – estamos diante de fatos.”

3 “Como se verá, demora-se para compreender no Supremo que o próprio STF seria vítima da Lava Jato. E o STF vai se omitindo dolosamente também atento à sua popularidade. O Ministério Público Federal pede a prisão de um senador da República, Delcídio do Amaral.” Cf. FERNANDES, Fernando Augusto. Geopolítica da intervenção: a verdadeira história da Lava Jato. São Paulo: Geração Editorial, 2020, p. 237.

4 Conforme abordado: https://www.conjur.com.br/2022-mai-09/fernando-fernandes-imunidade-absoluta-parlamentar/

Conteúdo relacionado: