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Inconstitucionalidade e Realidade

5 de maio de 2005

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Um cidadão pela metade

Quando um trabalhador começa a andar a pé por não ter acesso ao transporte coletivo, algo está errado: ou com ele, ou com o transporte.

Quando vários trabalhadores começam a submeter-se a longas caminhadas para o deslocamento ao trabalho, estamos diante de um sintoma de que algo vai mal.

Quando trinta e sete milhões1 não conseguem acessar o transporte público de forma regular, por absoluta impossibilidade de pagar a tarifa, estamos diante de um grave problema social e um atentado ao direito constitucional de ir e vir.

Quando muitos deles não voltam senão no fim de semana, estamos diante de afronta a dois princípios estruturadores do Estado Democrático de Direito: a cidadania (que é reduzida) e a dignidade humana (que é desprezada)2.

O cidadão que não pode exercer sua liberdade de ir e vir em condições mínimas de acessibilidade é um meio-cidadão; o que não consegue voltar para casa todos os dias transforma-se num meio-marido e passa a ter meia-família.

Estão em jogo, portanto, os próprios fundamentos do Estado Democrático de Direito e até a família como base da sociedade3.Um cidadão pela metade deixa de ser cidadão.

Realidade e inconstitucionalidade

Durante muito tempo, as ações de inconstitucionalidade eram examinadas num plano quase virtual de mero confronto da lei impugnada com a Constituição. Uma ação sem lide, sine contradictores, sine partes, uma ação objetiva, uma ação abstrata.

Até o case Muller x Oregon (1908), era assim que a Suprema Corte dos Estados Unidos via a questão constitucional. Esse julgamento marcou uma virada hermenêutica da Suprema Corte daquele País. Um memorial (brief) que o advogado Brandeis dirigiu àquela Corte continha duas páginas sobre a questão jurídica e cento e dez dedicada aos efeitos de longa duração do trabalho sobre a situação da mulher que era o tema jurídico-constitucional em pauta. Plantava-se, assim, a semente da instituição do amicus curiae que, logo em seguida, passou a admitir amici curiae, ampliando o leque de informações da realidade envolvida na suposta abstração do conflito. Entre nós, só recentemente se passou a admitir a manifestação de terceiros pela inovação da Lei 9.868/99.

Hoje, porém, vive-se declaradamente uma “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”. As vozes da cidadania são escutadas nas salas de julgamento; a realidade penetra os portais austeros dos tribunais e a sociedade passa a ser uma espécie de litisconsorte necessária nas ações de inconstitucionalidade.

Adverte Häberle que ninguém discute sobre a necessidade de “integração da realidade no processo de interpretação” 4. Diz ele que, no processo interpretativo “não se podem perder de vista as pessoas concretas” 5 nem forças “facticamente relevantes” 6. O ministro Gilmar Ferreira Mendes, nessa linha, afirma: “Essa abordagem (…) tem, pelo menos, a virtude de afastar a ilusão, alimentada pelo método hermenêutico-clássico, de que se poderia separar em departamentos estanques, os elementos fáticos e normativos envolvidos” 7.

Como ensinam Ives Gandra da Silva Martins e o ministro Gilmar Ferreira Mendes, a concepção dominante defendia que “a questão constitucional configurava simples “questão jurídica” de aferição da legitimidade da lei em face da Constituição” 8. Concluem os eminentes tratadistas: “Hoje, não  há como negar a comunicação entre a norma e o fato, 9 pois a dogmática vem apontando para a inevitabilidade da apreciação de dados da realidade no processo de interpretação e de aplicação da lei como elemento trivial da própria metodologia jurídica” 10.

Donde a conclusão dos eméritos constitucionalistas: “Restou demonstrado, então, que até mesmo no chamado controle abstrato de normas não se procede a um simples contraste entre disposições de direito ordinário e os princípios constitucionais. Ao revés, também aqui fica evidente que se aprecia a relação entre a lei e o problema que se lhe apresenta em face do parâmetro constitucional” 11.

A lição, portanto, é clara. Não descaracteriza a objetividade do processo e sua (suposta) ausência de contradictores essa integração da realidade no processo interpretativo. Trazer o problema dos usuários, excluídos pelo preço do acesso ao serviço público de ônibus e afastados das famílias em viagens sem volta, não deixa de ser uma forma de integrar a realidade no processo.

Norma e situação normada são duas faces do mesmo ser.

O afazer hermenêutico não se desenvolve, pois, “abstratamente, antes exige um ir-e-vir ou um balançar de olhos entre a norma e o fato ou entre a possível interpretação e seu resultado” 12.  “Compreender é um ver em torno”, sintetiza  Lênio Luiz Streck, em inovadora obra sobre hermenêutica jurídica 13 .

Quem examina a realidade brasileira, no campo dos transportes públicos, é capaz de se dar conta de que não está sendo julgado o caso dos policiais militares do Rio Grande do Sul que adquiriram um direito de gratuidade (pago pelos demais usuários) mesmo quando não estão em serviço.

O que está sendo julgado, na verdade, é uma prática clientelista nacional, um hábito político irresponsável, uma conduta legislativa leviana que conquista alguns com a gratuidade enquanto engana a outros, fazendo-os pagar a conta sem sentir que o fazem. E quando estes já não podem pagar, manda-os andar a pé e  lhes submete a um ostracismo familiar que destrói os próprios fundamentos da dignidade humana.

Otto Bachof alertava que “As decisões invalidantes de uma lei podem ocasionar catástrofes, não apenas para o caso concreto, mas também para um invisível número de casos (…)”, motivo por que “pode e deve o juiz constitucional não perder de vista as conseqüências políticas de suas sentenças” 14. A lição pode ser decodificada ao contrário. “As decisões invalidantes de uma lei podem ocasionar uma solução, não apenas para o caso concreto, mas também para um invisível número de casos (…)”, motivo por que “pode e deve o juiz constitucional não perder de vista as conseqüências políticas de suas sentenças”.

Como está posta a questão no STF

Assim está apresentada no STF a argumentação básica da ADIN no plano estritamente jurídico sem as cores da realidade atual do País:

1. A Constituição garante a propriedade (CF, art. 5º, caput; art. 5º, XXII e art. 170, II). “O direito de propriedade é abrangente de todo o patrimônio, isto é, os direitos reais, pessoais e a propriedade literária, artística, as invenções e a descoberta. A conceituação de patrimônio inclui o conjunto de direitos e obrigações economicamente apreciáveis…” (Carvalho, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional Didática, ed. Del Rey, BH, 1991, pág. 77).

2. A concessão de serviços de utilidade pública – afetada pela legislação impugnada – caracteriza uma property como o enfatizou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul 15, adotando a terminologia do direito anglo-saxão, estando, pois, protegida pelas garantias constitucionais da propriedade em geral.

3. A imposição de prestação de serviço gratuito em favor de toda uma corporação militar, que conta com milhares de servidores, constitui uma verdadeira desapropriação sem a paga da correspondente indenização 16. Uma violação do devido processo legal substancial 17.

4. Por isso mesmo, a Constituição de 1988, quando quis excepcionar o princípio da remuneração dos serviços concedidos, não deixou tal norma ao arbítrio do legislador infraconstitucional. Tratando-se de exceção aos direitos fundamentais, consignou-o no art. 230, § 2º, instituindo o direito de gratuidade, nos transportes urbanos, para os maiores de 65 anos.

5. A gratuidade se digladia, ainda, com a regra do art. 175 da Constituição, que regula as concessões de serviços públicos, governadas pelo princípio da remuneração e do equilíbrio da equação financeira dos serviços. Em obra recente, na época, o prof. Eros Grau, hoje relator da matéria no STF, comentando tal disposição, ensinava que:

“Da análise do preceito constitucional, verifica-se que o concessionário é beneficiado pela estipulação legal da política tarifária. Vale dizer, à capacidade de exercício do serviço atribuída ao concessionário adere um direito à remuneração pelo exercício em condições de equilíbrio econômico-financeiro” 18.

6. Aos Estados, como aos Municípios, não é permitido ampliar a norma da gratuidade para estendê-la a outros segmentos de usuários, até mesmo porque estabelecer direitos de usuários 19 do serviço público é de privativa competência federal 20, sob pena de, conforme o lugar do País, o cidadão ter ou mais ou menos direito perante o serviço público (violação da isonomia).

Sobre a natureza confiscatória da tarifa, Bilac Pinto, em obra infelizmente não reeditada, coligiu importantes observações, enfatizando:

“O Estado democrático moderno de tal modo apura sua técnica de proteção da propriedade contra o confisco que até mesmo para restrições autorizadas àquele direito, como os impostos e as regulamentações de tarifas de serviços públicos, existem certos limites razoáveis, estabelecidos em face dos elementos em presença. Toda tentativa de ultrapassar esses limites incide em censura de inconstitucionalidade e, pois, constitui abuso de poder fiscal ou regulamentar que se desnatura em confisco.”

E, conclui:

“Nos Estados Unidos, quando as tarifas dos serviços de utilidade pública, fixados pela Administração Pública, não remuneram devidamente o capital invertido, as empresas exploradoras recorrem aos tribunais que, quando convencidos da procedência das alegações, anulam o ato administrativo sob o fundamento de que a tarifa é confiscatória” 21

A restauração da cidadania

Está claro, ainda, que essas leis de gratuidade têm a natureza de medidas assistenciais 22 claramente visíveis na tríplice fisionomia da seguridade social: saúde, previdência e assistência social 23. Como medida de seguridade social, portanto, toda lei de gratuidade só pode ser criada com a indicação da “correspondente fonte de custeio total” [CF, art. 195, § 5º], para ser “financiada por toda a sociedade” 24.

Contrastando com a clareza dessa regra, a transferência dos custos das gratuidades para os usuários pagantes implica uma espécie de tributo invisível, na verdade, uma taxa sem causa, por não corresponder a prestação alguma, fazendo-os pagar um preço maior que o do serviço prestado, no qual se inclui o custo da gratuidade alheia.

Está nas mãos do STF, portanto, como muitas vezes esteve na história constitucional do País, uma decisão histórica desta feita sobre o destino do transporte público e a restauração da cidadania plena de milhões de semi-cidadãos excluídos do serviço público  e, para aqueles que ainda usuários são,  para libertá-los do ônus de pagar o preço dos que andam de graça.

Notas ____________________________________________________________________

1  Fontes do IPEA

2  CF, art. 1º, incisos II e III.

3  CF, art. 226.

4  Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental”da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Sérgio A. Fabris Editor, Porto Alegre, 2.002, p.30.

5  Op. cit. supra, p. 24.

6  Op. cit., p. 33.

7  Jurisdição Constitucional,Ed. Saraiva, SP, 3a ed., 1.999, p.339.

8  Controle Concentrado de Constitucionalidade – Comentários à Lei 9.868, de 10-11-1.999, Ed Saraiva, SP, 2.001, p. 171.

9  idem, ibidem, p. 171.

10  idem, ibidem, p 170.

11  idem, ibidem, p. 173.

12  Larenz, Karl. Metodologia da Direito, 1.978, p. 355 e 396/8.

13  Hermenêutica Jurídica e[m] crise, Ed. Livraria do Advogado,P. Alegre, 2.003, p. 269.

14   O juiz constitucional entre o Direito e a Política”, in Sarmento, Daniel, organizador. O Controle de Constitucionalidade e a Lei 9.868/99, ed. Lúmen Júris, p. 97].

15  Revista Jur. do TJRGS, 85/365.

16  CF,art. 5º, inc. XXIV.

17  CF, art. 5º, inc. LIV

18  A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – Interpretação e Crítica, ed. RT, SP, 1990, pág. 158.

19  CF, art. 175, § unico, inc. II.

20  CF, art. 21, inc.XI

21   Estudos de Direito Público, Ed. For., Rio, 1953, pág. 152.

22  CF, art. 194 c/c 203 e ss.

23  CF, art. 194

24  CF, art. 195 c/c art. 295, § 5º e 204]