Edição

Jurisdição de Eqüidade e Eqüidade-criação

5 de maio de 2003

André R. C. Fontes Desembargador Federal do TRF da 2ª Região

Compartilhe:

Ordinariamente, a eqüidade é vista como a justiça do caso concreto. Foi ela tirada de uma noção de matemática das obras de Aristóteles, inspirada na proporção ou igualdade de relações. Coube ao Direito Romano dar-lhe um conteúdo e valor jurídico. O pensamento jurídico romano estabeleceu a capital importância da aequitas para todas as coisas, especialmente para o Direito. A noção de eqüidade continuou a sua evolução, chegando a identificar-se historicamente com o conceito de justo, de justiça e mesmo de benignidade ou benevolência.

Na esteira da evolução dos conceitos, a eqüidade passa a tomar a designação também de todo o juízo (ou seja, desenvolvido por um juiz) não-legal, que venha efetivamente a resolver um conflito intersubjetivo de interesses. E isso deriva também dos julgamentos romanos baseados na equidade e aprimorados especialmente pelo Direito Comum, mais conhecido na sua versão anglófona “Common Law”.

O  conceito de equidade na sua versão clássica como justiça do caso concreto e de equidade “como se Fosse legislador (Expressão análoga, e no nosso entender, própria e oportuna do art. 114 do Código de Processo Civil de 1939 e no art. 10 do Código de Obrigações Suíços, que utilizamos integralmente) não se confundem. O conceito clássico vem do jus aequum romano e supõe a igualdade de tratamento para todos e ao mesmo tempo, bem como o de atender-se as circunstâncias do caso. Já a eqüidade-criação fundamenta o exercício da jurisdição como se o juiz também Fosse um legislador para o caso concreto.

Sob a exclusiva ótica da apreciação do juiz, duas perspectivas tornam-se possíveis, e ambas dissociadas desse conceito histórico: (a) a equidade-interpretação e (b) a eqüidade-criação.

A eqüidade-criação e a eqüidade-interpretação

Na aplicação de norma jurídica deve-se sempre atender a sua finalidade (intentio Legis). Nesse sentido, a interpretação teleológica determina as interpretações que visem a alcançar o fim da norma jurídica. Certo no entanto que, as vezes a finalidade da norma somente é atingível quando se nega a sua própria aplicação. De maneira que a formula de eqüidade (interpretação) passa a ser a de “realizar a finalidade da norma deixando de aplicá-la”. Por exemplo, uma lei que determinasse vacinação em massa de população contra uma epidemia não seria aplicada em alguém que tivesse anticorpos naturais para doença mas Fosse vulnerável a vacinação (não-sintética) determinada pela lei hipotética. Da mesma forma, o histórico exemplo da permissão de entrada de um cego acompanhado do seu cão-guia em lugares onde Fosse proibida a entrada de animais: somente negando a norma e que se alcançaria a sua finalidade de melhor uso do espaço, respeitado o caráter singular da sua aplicação.

Relativamente a outra forma de equidade (equidade-criação), é assim designada por servir de fundamento para o juiz proferir decisões não lastreadas na lei. Se ao juiz é determinada a observância da lei e do Direito em atendimento ao princípio da vinculação de jurisdição, que lhe impõe decisões secundum Legis, excepcionalmente deverá julgar “como se legislador fosse”, criando a solução do caso e resolvendo o litígio. Quando exerce jurisdição lastreada somente na lei, diz-se que se tem a jurisdição legal. Ao contrário, quando se tem decisões lastreadas na equidade, tem-se a jurisdição de eqüidade, que e a forma pela qual se revela especificamente a equidade-criação.

Poderíamos simplificar dizendo, em linhas gerais que, a origem desses dois fenômenos (eqüidade-criação e equidade-interpretação) remonta verdadeiramente a obra de Aristóteles, especificamente a “Ética a Nicônamo”. Nesta linha de idéias, a evolução conceitual modernamente reduziu a natureza de uma e de outra a seguinte distinção: a eqüidade-criação é fenômeno jurisdicional, enquanto a eqüidade-interpretação um fenômeno hermenêutico. A primeira é de exclusiva utilização pelo magistrado e, portanto, fundamento da resolução de um conflito; a segunda de utilização irrestrita, aplicável em qualquer circunstância ou lugar, destinado a dar cumprimento aos objetivos finais de uma norma jurídica, pela sua não-aplicação.

Fundamentos históricos da jurisdição de eqüidade

O termo eqüidade sempre teve um conceito equívoco, dos romanos a atualidade, tendo passado pela Idade Média como de conteúdo vago e não encontrando qualquer determinação objetiva.

Segundo a opinião comum, o Direito Romano distinguia o jus da aequitas, marcando a dissociação, desde aquela época, entre o Direito e a equidade. Mas não se sabia se essa deveria informar aquela e vice-versa. Dois milênios de distância é o tema ainda constitui objeto de profundas investigações, principalmente quanto a fronteira entre eles.

No regime do “Common Law” a distinção vem como ruína do séculos XIV e XVII, manifestando-se verdadeiramente como um movimento político contra o “estritismo” da interpretação de alguns juízes que estavam atrelados aos costumes e a tradição e que, com isso, comprometiam a concessão de novos “writs”. Ao lado disso, havia o direito do rei de fazer justiça nos casos de lacunas. Surgiram, então, tribunais com poderes baseados na “equity”; ao lado daqueles baseados nos costumes.

No sistema romano germânico, a eqüidade surge como fundamento da contraposição as regras estabelecidas pelo Direito positivo justamente pela ausência destas. Exemplo significativo disso é o Código Civil Suíço, cujo art. 1º atribui ao juiz indistintamente a usar a eqüidade como forma de solucionar o conflito na hipótese de inexistir solução legal.