Edição 46
Medida cautelar
5 de maio de 2004
Membro do Conselho Editorial e Ministro aposentado do STJ
A morosidade nas respostas às lides vem causando à nação brasileira males incomensuráveis. Felizmente não são poucos os que a condenam e tentam reverter o quadro caótico, instalado na Justiça brasileira, quanto à solução, no tempo, das lides.
Infelizmente mortais, os homens têm tempo certo ou limitado de vida, e o tempo é contado de sol a sol. E são necessários muitos sóis para a solução definitiva das demandas. Isso se deve, fundamentalmente, à necessidade do homem de fazer justiça. A realidade, porém, é que, privado da ubiqüidade, reservada por Deus a si próprio, os homens devem valer-se da inteligência, do raciocínio lógico, para conhecer os fatos passados determinantes da querela e aplicar-lhe as regras da lei.
Elaboradas pelos homens, as leis regulam o comportamento social e são qualificadas de boas, inaplicáveis, adequadas e inadequadas, justas ou injustas, enfim, subordinam-se à interpretação que delas faça o povo, o detentor do Poder, no regime democrático de direito, como é o brasileiro, por seus representantes, eleitos ou não.
O conhecimento humano, já de há muito o disseram os gregos, impõe o respeito a método e processo. Para chegar-se ao átomo partiu-se do conhecimento das coisas da natureza, dos fenômenos observados, pensados e definidos. Enfim, se fez necessário palmilhar passo a passo os caminhos da observação, somando-se conhecimento para chegar-se à verdade científica dos nossos dias, a síntese, como definiu o filósofo Hegel, e que se transformará em tese e será refutada com antítese, até alcançar-se nova síntese, e assim por diante, até o fim dos dias. Veja-se, por exemplo, a teoria da relatividade, hoje já contestada por alguns físicos. E até hoje se debatem os filósofos quanto à existência de Deus.
O brasileiro é um constante perseguidor da verdade. Por isso mesmo, não vingou, entre nós, a pena de morte. Repele a punição do inocente e mantém a possibilidade contínua da revisão das decisões, construindo um processo permeado de recursos, alguns mesmo contrários à lógica do proceder para a frente e ao princípio democrático do respeito à vontade da maioria (os agravos e os embargos infringentes do julgado).
Mas na busca da verdade e no afã de encurtar-se o tempo despendido para a solução das lides, homens dedicados e bem intencionados elegeram soluções e as transformaram em lei, reformando o Código de Processo Civil. Assim foi com as chamadas medidas cautelares, cuja utilização exacerbada vem conduzindo, permissa venia, a resultados por eles indesejados ou desnecessários.
As medidas cautelares são preparatórias ou incidentais. As preparatórias visam, geralmente, à antecipação de providências acautelatórias de direito das partes e à composição da prova necessária ao julgamento favorável da pretensão resistida, na ação a ser manifestada perante o Estado/Juiz. As incidentais permitem à parte preservar ou assegurar direitos em meio ao processo, ou seja, já no curso do processo.
Na dicção do processo civil, ciência indispensável à aplicação da lei aos fatos da vida para a concretização do direito e da justiça dentro dos princípios do respeito à igualdade das partes e do devido processo estabelecidos nas leis a partir da Lei Maior, a Constituição, temos diversos procedimentos: sumário, sumaríssimo, ordinário, cautelar e executório. Valho-me, sempre, de uma metáfora, quando discorro sobre a crise aguda do Poder Judiciário, equiparando o procedimento à linha de montagem, com que Henry Ford iniciou a nova fase da revolução industrial de produção em massa, de que resulta a chamada “sociedade de consumo”, endeusada e malhada por uns e outros, a depender da ideologia professada.
A linha de montagem se caracteriza por trilhos e o processo de montagem, popularizado pelo imortal “Carlito”, no célebre filme “Tempos Modernos”, se inicia com o chassis que, no processo, se chamaria petição inicial. Ao chassis acrescentam os operários as peças indispensáveis à montagem/fabricação do produto final (automóvel, geladeira, rádio, televisor, liquidificador, etc).
No processo, também assim ocorre. Advogados e prepostos do Estado (juiz, escrivão, promotor, peritos, serventuários, desembargadores, ministros) praticam atos necessários à instrução do feito para permitir a conclusão, ou seja, o produto final, a sentença, definida no CPC como “o ato que põe termo ao processo”. A linha de montagem do processo civil ou penal, porém, não pára no que se entende vulgarmente por sentença. É que a sentença de primeira instância é ato singular praticado pelo juiz, e os povos decidiram que não era possível submeter os acusados ao julgamento único, não raro despótico dos soberanos, observado que nem Salomão foi justo quando mandou o marido de Betsaba aos perigos da guerra de que resultou a sua morte.
A sentença individual submete-se, pois, a um rejulgamento coletivo no recurso de apelação (hoje o princípio não é absoluto por força da malsinada redação do art. 557 e §§ do CPC), e a moderna processualística vem restringindo a poucas hipóteses o chamado efeito suspensivo. Veja-se que aos recursos, a todos os previstos em lei (art. 496, I a VIII, do CPC), a lei atribui os efeitos devolutivo ou suspensivo. Em verdade todos os recursos devolvem o conhecimento e julgamento da causa ao Tribunal. O efeito suspensivo, porém, impede a prática de atos posteriores ao recorrido e da execução provisória, medida de preparação e adiantamento da execução definitiva da sentença/acórdão, que deverá seguir-se ao trânsito em julgado da decisão proferida no recurso, isto é, quando já não houver possibilidade jurídica de interposição de novo recurso ou decorrido in albis o prazo de manejo de outro recurso cabível, ocasião em que teremos constituída a coisa julgada material, definida no art. 467 do CPC como “a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.
Voltando à linha de montagem, o efeito devolutivo não paralisa o processo, continua a ação a andar na esteira do procedimento adequado. O efeito suspensivo, ao contrário, paralisa a linha, a esteira, o processo, para aguardar se examine o produto (no processo o ato impugnado, a decisão recorrida) para consertá-lo ou mantê-lo, se for o caso, só prosseguindo, portanto, em movimento após o julgamento do recurso recebido em tal efeito.
Os recursos especial e extraordinário, cabíveis nas hipóteses enumeradas nos arts. 102 e 105, III, letras “a”, “b” e “c”, da CF/88, “serão recebidos no efeito devolutivo”, como determina, peremptoriamente, o § 2º do art. 542.
Tais recursos, como vimos antes, não paralisam a linha de montagem, no interesse social de acelerar a prestação jurisdicional no tempo.
A má interpretação do sistema processual e a exacerbação dos poderes cautelares vêm, contudo, enchendo os tribunais de medidas cautelares com pedido de concessão de efeito suspensivo a tais recursos, chegando mesmo alguns doutrinadores a criar uma figura nova, qual seja, a do efeito suspensivo ativo, a meu ver absurda, pois encerra uma contradição em seu objeto já que não se pode conceber tenha curso o que se pretende suspenso, paralisado ou, o que é pior, modificado.
Mas o barro jogado à parede vem colando. E a bondade e a vontade de proteger o vencido têm conduzido ao deferimento das cautelares mesmo antes de manifestar-se o Presidente do Tribunal a quo sobre a admissibilidade do recurso especial, contrariando os arts. 542, § 1º, e 544 do CPC e as Súmulas 123 do STJ e 634 e 635 do STF.
Tenho invariavelmente indeferido tais medidas cautelares, seja por não poder conceder efeito suspensivo a recurso especial contra legem, seja por não poder impedir que a parte vencedora execute provisoriamente o acórdão, direito que lhe é deferido expressamente pelos arts. 587 e 588, incisos e parágrafos do CPC.
Ora, não posso paralisar o processo e impedir a execução provisória do acórdão atacado por recurso especial, ou conceder direito negado pelo acórdão, como querem os requerentes de medida cautelar para obter “efeito suspensivo ativo”. A propósito, já disse na decisão proferida na MC 3372/SP que não podia consagrar o nada jurídico, quando a sentença e o acórdão negavam o direito dito líquido e certo à parte. Sobre o tema, concedi cautelar quando a liminar e a sentença deferiram a segurança, e a autoridade coatora se apressara em dar execução ao acórdão reformador, em prejuízo do Requerente. É que, em se tratando de mandado de segurança, a sua concessão por sentença gerou direito que não pode ser postergado enquanto atacada a decisão por recurso. Na hipótese, deferi cautelar para manter o direito concedido e o farei sempre para proteger direito ameaçado por ato administrativo da parte, em respeito ao próprio efeito devolutivo do recurso especial que impede a formação da coisa julgada material.
Dir-se-á que haveria contradição no confronto das decisões analisadas. Creio, porém, que não se confrontam. Uma coisa é a concessão de efeito suspensivo a recurso que não o tem; outra será o de deferir cautelar para prevenir a prática de ato contrário ao direito e em desrespeito à lei, qual seja, o de prevenir e impedir execução definitiva de julgado recorrido, prática hoje possível pela permissibilidade concedida pela Lei 10.444, que deu nova redação ao inciso II do art. 588, permitindo a alienação de bem e o levantamento de depósito em dinheiro mediante prestação de caução, criando, a meu sentir, maiores dificuldades à execução e, de certa forma, permitindo as idas e vindas do processo de execução (art. 588, III) e quebrando de algum modo, a autoridade da coisa julgada, por isso mesmo que admite, sob condição, a execução definitiva de sentença/acórdão recorrido, fragmentando o sistema lógico da ciência do processo, que tem na coisa julgada um dos seus pilares fundamentais.
De qualquer sorte, a execução provisória tornada definitiva mediante caução, ficará sem efeito se sobrevier acórdão modificador ou anulatório da sentença executada, restituindo às partes o estado anterior (é o vai-e-vem do processo, que se não pode admitir na linha de montagem) como estabelecido no inciso III do art. 588 reformado, que prevê a liquidação de possíveis prejuízos no mesmo processo, no inciso IV. Caso haverá de prejuízo insanável ou de difícil reparação, que poderá ser evitado mediante concessão de medida cautelar.
O que é, a meu ver, inadmissível é a concessão de efeito suspensivo a recurso a que a lei não o defere, mormente se o pedido é de “efeito suspensivo ativo”, pois não posso conceber se o conceda para reformar o acórdão recorrido.
A manutenção da ação na linha de montagem, sempre em curso para a frente, sem idas e vindas, tornaria mais rápida, no tempo, a resposta do Estado às demandas dos cidadãos.
Por último, vale recordar, com Rui Barbosa, que “fora da lei não há salvação”.