Nova agenda tributária, mais justa e solidária*

7 de novembro de 2023

José Antonio Dias Toffoli Ministro do STF

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*Palestra proferida pelo Ministro Dias no IV New Trends in the Common Law – leia a cobertura completa do evento na reportagem a seguir.

Considero extremamente importante debater sobre governança digital, quando em jogo a tributação, especialmente neste momento em que questões como soberania fiscal e concorrência tributária internacional estão no topo da agenda política.

O problema da “concorrência tributária internacional” traz consigo o grande desafio para os poderes públicos, que são as mudanças jurídicas e institucionais necessárias para assegurar o funcionamento efetivo de uma economia globalizada.

Se o quadro de realocação indiscriminada de recursos pelo mundo é responsável por deflagrar o problema da “concorrência tributária internacional”, no Brasil encontramos fenômeno similar que é o da “guerra fiscal” travada entre os entes da federação, que concedem incentivos fiscais, unilateralmente, à margem dos instrumentos legais do federalismo de cooperação e de equilíbrio.

A jurisprudência da Corte é particularmente severa com a “guerra fiscal” e tem atuado com vistas a minimizar os seus impactos no desenvolvimento regional de áreas do território brasileiro desfavorecidas sob os pontos de vista socioeconômico.

Nesse cenário de metamorfose jurídica do Direito Tributário, os olhos dos governos nacionais estão voltados para o “mundo” em busca de orientações sobre como conduzir seus assuntos internos, inclusive no que se refere ao formato do seu sistema tributário.

Atente-se que o Brasil assumiu compromissos internacionais relativos à transparência e ao intercâmbio de informações financeiras para fins tributários.

Em julgamento de minha relatoria, partindo da confluência entre os deveres do contribuinte (dever fundamental de pagar tributos) e os deveres da administração tributária (o dever de bem tributar e fiscalizar), a Suprema Corte declarou constitucional as normas federais relativas ao sigilo das operações de instituições financeiras.

Em abril de 2022, a Suprema Corte declarou constitucional a norma geral antielisiva, assentando que a norma questionada não visa afastar formas lícitas de elisão ou de planejamento tributário, mas sim atingir o abuso do exercício desse direito, cabendo à administração tributária o ônus da prova.

São inúmeras as reformas estruturantes que o Brasil necessita para alcançar desenvolvimento econômico e social. No que se refere ao Sistema Tributário Nacional, o cenário é de avanços e mudanças estruturantes, em razão da pauta de votação no Parlamento brasileiro da reforma tributária sobre o consumo.

A reforma tributária está entre nossas pendências como nação há mais de 30 anos. Quais serão os impactos dessa reforma, na litigiosidade e na competitividade, ninguém sabe ao certo. Mas, certamente, o novo sistema tributário será muito diferente do atual, que está obsoleto e prejudica a competitividade. Além de ser demasiadamente complexo, com reflexos diretos na litigiosidade.

Enquanto a agenda tributária não avança na esfera política adequada, o protagonismo da Suprema Corte brasileira na resolução dos conflitos federativos e na tutela de direitos fundamentais instrumentalizados por meio da tributação se acentua cada vez mais.

Trago alguns dados relativos ao volume de processos em matéria tributária, os quais estão sendo apreciados na sistemática dos precedentes vinculantes. O total é de 311 temas de repercussão geral (25% de todas as RG reconhecidas). Duzentos e setenta e quatro temas tributários já foram julgados e 33 restam pendentes de julgamento de mérito. As causas tributárias correspondem a 12% do acervo de processos em tramitação.

Costumo afirmar que nenhuma corte constitucional julga tanto quanto a Suprema Corte brasileira. E ela tem resolvido causas tributárias de grande relevância, não só do ponto de vista político e econômico, mas também de alto impacto social.

A Corte tem se utilizado, inclusive, dos meios tecnológicos disponíveis, como os ambientes virtuais de julgamento.

Selecionei outros precedentes para breves comentários, na tentativa de demonstrar algumas “tendências tributárias atuais na jurisdição constitucional brasileira”.

1) A ideia de governança remete à ideia de segurança jurídica, essencial para que os agentes econômicos invistam no País e realizem novos negócios. Segurança de que os pactos, os contratos, as leis e a Constituição serão cumpridas, serão interpretadas de maneira uniforme e não sofrerão grandes alterações no decorrer do tempo.

Julgamento recente da Suprema Corte brasileira, de relatoria do Ministro Roberto Barroso, envolveu os temas da garantia da coisa julgada material e da necessidade de estabilidade das relações jurídicas tributárias de trato continuado diante dos precedentes vinculantes.

Nesse julgado, a Corte definiu que o efeito vinculante decorrente do juízo definitivo de constitucionalidade, em sede de controle concentrado e de repercussão geral, “rompe com o silogismo original da sentença judicial transitada em julgado fazendo cessar os seus efeitos, para o futuro”. (Essas foram as palavras do Ministro Roberto Barroso).

Evitam-se, assim, incoerências e prestigiam-se a força normativa da Constituição, o princípio da isonomia entre os contribuintes, a livre concorrência e a segurança jurídica.

2) A revolução tecnológica e os novos modelos de negócios no Brasil e no mundo realizados no mundo virtual, chamaram a atenção das autoridades fiscais brasileiras nos últimos tempos. Cloud computing, e-commerce, jogos on-line e streaming, são alguns exemplos de atividades realizadas na Internet.

Há mais de duas décadas, a Corte aprecia demandas acerca de qual tributo deve incidir sobre negócios jurídicos relativos a programas de computador (softwares), em razão de inúmeros conflitos federativos. Tradicionalmente, a Suprema Corte fazia uma distinção. Incidiria o imposto estadual (ICMS) na comercialização de softwares no varejo, no que se denominou como softwares de prateleira. E o imposto municipal (ISS), caso o programa de computador fosse produzido por encomenda.

A decisão se mostrou engenhosa para aquela época, em que os softwares eram armazenados em mídia física, como um disquete ou um CD. Contudo, com o avanço das novas tecnologias e o advento de novas formas de disponibilização de bens e serviços, especialmente por meio da Internet, aquela solução inicial precisou ser revisitada.

Em 2021, em julgado de minha relatoria, a Suprema Corte se manifestou favoravelmente à incidência exclusiva do imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISSQN), no licenciamento do direito de uso de softwares, independentemente da forma pela qual o programa é disponibilizado. Ou seja, em suporte físico, download ou em nuvem.

É importante registrar que essa evolução de orientação foi também inspirada na política tributária europeia que considera serviços, para fins do IVA, “todas as transmissões eletrônicas e quaisquer bens incorpóreos fornecidos por esses meios”.

A reforma tributária em curso no Parlamento brasileiro segue a mesma orientação. Objetiva-se criar um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), em substituição a uma série de tributos10, com características de um imposto sobre o valor adicionado (IVA), modelo adotado pela maioria dos países para a tributação do consumo, notadamente na União Europeia.

4) Breves comentários também merecem a tributação dos livros digitais e a tendência da Corte em analisar as imunidades tributárias à luz de sua finalidade. Durante a pandemia, em 2020, houve aumento de 81% de livros eletrônicos vendidos no Brasil.

Recente pesquisa da Nielsen BookData, ano base 2022, sobre conteúdo digital do setor editorial brasileiro, mostrou que, nos últimos quatro anos, o faturamento das editoras com conteúdo digital apresentou crescimento de 95% em termos reais.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 prevê que os livros, bem como o papel destinado à sua impressão, são imunes a impostos. Muito se discutiu se apenas os livros efetivamente impressos nos moldes da prensa de Gutenberg gozariam dessa imunidade.

Em julgado de minha relatoria, registrei que a interpretação do texto constitucional deve se projetar no futuro e levar em conta os novos fenômenos sociais, culturais e tecnológicos. Assim, a Corte concluiu que os livros digitais e os seus suportes eletrônicos são sim imunes aos impostos, tal como os livros impressos em papel.

No mesmo julgado, a Corte compreendeu que os livros gravados em áudio seriam, da mesma forma, beneficiários da imunidade.

 5) A Suprema Corte brasileira também tem adotado uma conduta mais proativa na tutela de direitos fundamentais de grupos vulneráveis. Tradicionalmente, em questões de onerações e desonerações tributárias, por meio das quais se implementam políticas fiscais e econômicas, a Corte impõe um limite objetivo à sua própria atuação.

Essa autolimitação encontra eco no dogma do legislador negativo. Em síntese, por esse dogma, o Poder Judiciário estende benefício fiscal a destinatários não contemplados na lei, sob pena de afrontar os princípios da legalidade em matéria tributária e o da separação dos Poderes.

Julgados mais recentes têm sinalizado para a ruptura desse dogma. Cito julgados que se relacionam com esse tema, um de relatoria do Ministro Roberto Barroso; dois de minha relatoria.

a) No primeiro caso, a Corte possibilitou que a pessoa com deficiência, sob determinadas condições, pudesse constar como dependente, para fins de dedução na apuração do imposto sobre a renda de pessoa física.

Em seu voto, o Ministro Roberto Barroso destacou que as pessoas com deficiência compõem o grupo vulnerável e que a Constituição brasileira veda que o tratamento tributário cause uma discriminação indireta que, “em afronta à isonomia, prejudique o direito ao trabalho das pessoas com deficiência e afronte o conceito constitucional de renda e a capacidade contributiva de quem arca com as despesas”.

b) No segundo caso, a Corte reconheceu que o legislador, ao adotar uma política de isenção tributária para aquisição de veículos por pessoas com determinadas deficiências, teria sido omisso ao não prever o benefício para as pessoas com deficiência auditiva.

Analisando a finalidade da política pública, a Corte assegurou que as pessoas com deficiência auditiva pudessem gozar do benefício fiscal, enquanto perdurasse a omissão inconstitucional. A política por trás daquele benefício fiscal era, justamente, o fortalecimento do processo de inclusão social das pessoas com necessidades especiais, de modo a alcançarem autonomia e independência.

A solução concilia a Constituição com a margem de discricionariedade do legislador, que tem, a partir da declaração da inconstitucionalidade, o dever de corrigir a norma.

c) O outro caso envolveu a tributação da renda no recebimento de pensão alimentícia decorrente do direito de família. De acordo com a legislação federal, o pai podia deduzir o pagamento da pensão alimentícia do seu imposto de renda. Já a mãe era obrigada a acrescentar o valor da pensão nos seus rendimentos e a pagar o tributo. O Ministro Roberto Barroso desenvolveu, com maestria, a tese de que a incidência do imposto de renda sobre pensão alimentícia acaba por afrontar a igualdade de gênero.

É importante o registro. No Brasil, a tributação da pensão alimentícia penalizava ainda mais as mulheres, pois é comum serem elas as principais responsáveis pela guarda dos filhos menores em caso de dissolução da sociedade conjugal. Os dados da Secretaria da Receita Federal do Brasil demonstravam a disparidade gritante, quando comparadas as deduções de homens e mulheres em relação às despesas com pagamento de pensão alimentícia.

Nesse caso, a Suprema Corte reconheceu a inconstitucionalidade do imposto de renda sobre a pensão alimentícia. A solução pautou-se no princípio da igualdade e na proteção dos filhos menores, cujo dever de assistência, criação e educação, ultrapassam os limites da sociedade conjugal.

6) Como se pode notar, a Suprema Corte tem avançado na análise do mérito de políticas públicas instrumentalizadas por meio da tributação. Há uma clara tendência em romper com dogmas tradicionais pautados no formalismo jurídico, de modo a permitir a aplicação direta de valores e princípios constitucionais realizadores dos objetivos maiores da República Federal, dentre os quais a redução das desigualdades sociais e regionais e a dignidade da pessoa humana.

Nessa relação de mútuo desenvolvimento entre Direito Tributário e jurisdição constitucional, a Suprema Corte tem procurado racionalizar a sua agenda.

Há um especial enfoque para escolhas que digam com normas materialmente constitucionais, como os direitos e garantias fundamentais dos contribuintes e os conflitos federativos.

Enquanto isso, no âmbito do Parlamento brasileiro, para além das divergências entre os atores envolvidos no processo decisório sobre a “reforma tributária ideal”, não há como negar que ela impõe uma discussão que vai além de receitas e gastos – uma nova agenda federativa, mais solidária e justa.

Notas___________________________

1 ADI no 3.936-MC/DF, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJ 9/11/2007.

2 BECKER, Alfredo Augusto. “Teoria geral do Direito Tributário”. Lejus. São Paulo. 3a edição. 1998. P. 477.

3 ADI no 2859/DF, Relator Ministro Dias Toffoli, DJe de 21/10/2016.

4 Teoria do Jurista Português José Casalta Nabais no sentido de que o “pagamento de tributos é um dever fundamental.

5 ADI no 2446/DF, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, DJe de 27/4/2022.

6 Proposta de Emenda à Constituição no 45/2019.

7 BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Tribunal Pleno, Recurso Extraordinário no 949297/CE, Relator Ministro Edson Fachin. Recurso Extraordinário no 955227/BA, Relator Ministro Roberto Barroso, Brasília, 2/5/2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.

8 RE no 176.626/SP, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJ 11/12/1998.

9 ADI no 5659, Relator Ministro Dias Toffoli, DJe de 20/09/2021 e ADI no 1945, Relatora Ministra Cármen Lúcia e Redator para acórdão Ministro Dias Toffoli, DJe de 20/5/2021. Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/.

10https://www.atenaeditora.com.br/blog/venda-de-ebooks-dispara-durante-a-pandemia-no-brasil

11https://cbl.org.br/wp-content/uploads/2023/07/1684255978775
apresentaC3A7C3A3o_imprensa_completa_revisada-2.pdf

12 RE 330.817/RG (Tema no 593), Relator Ministro Dias Toffoli, DJe de 8/3/2017.

13 ADI no 5583/DF, Relator Ministro Roberto Barroso, DJe de 28/6/2021.

14 ADO no 30, Relator Ministro Dias Toffoli, DJe de 6/10/2020. Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/.

15 ADI 5422/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 23/8/2022. Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/.