Edição 93
O STJ necessita retornar ao rumo traçado pela Constituição
30 de abril de 2008
Humberto Gomes de Barros Membro do Conselho Editorial, Ministro Aposentado do STJ e Advogado
Inicio estas palavras agradecendo aos colegas pela confian-ça que depositaram em mim. Muito obrigado. Prometo fazer todo o possível para honrar os sufrágios que recebi.
Confesso, desde logo, minhas limitações na arte de administrar. Não sou bom gerente. Sei, contudo, escutar e aproveitar conselhos.
Por isso, rogo antecipadas desculpas pelos incômodos que causarei com seguidos pedidos de sugestões e outorga de tarefas a cada um dos ministros.
Pretendo ser – mais que presidente – o denominador comum das idéias e anseios de todos os que colaboram na distribuição de Justiça.
Além de meus pares no STJ, incomodarei muita gente, consultando e distribuindo encargos: magistrados; advogados; agentes do Ministério Público e os colegas servidores do Tribunal que não exercem jurisdição, mas colaboram na entrega da prestação jurisdicional.
Quedo-me tranqüilo na certeza de que terei a meu lado o ministro Cesar Asfor Rocha, amigo leal, experiente magistrado e primoroso jurista. Não bastassem essas qualidades, o vice-presidente Asfor Rocha é dotado de experiência e tino administrativo. Sua Excelência sabe temperar a firmeza da Justiça com a suavidade da poesia que compõe e transforma em belas músicas. Tem, de quebra, a orientá-lo a sabedoria de uma filha de Juazeiro do Norte: a Dra. Magda Bezerra Rocha. Conterrânea de nosso Padrinho Padre Cícero, ela certamente obterá suas graças, em favor de nossa administração.
Tenho, ainda, os exemplos deixados pelos eminentes ministros Raphael de Barros Monteiro e Francisco Peçanha Martins, que desenvolveram gestão eficiente, segura e discreta. Ao tempo em que lhes agradeço, presto homenagem a suas admiráveis esposas: Maria Auxiliadora de Barros Monteiro e Clara Peçanha Martins.
Senhor Presidente da República!
Há dezessete anos, a Ordem dos Advogados do Brasil inseriu-me em lista de seis nomes indicados para compor este Tribunal Superior.
Meu projeto de vida não envolvia a magistratura. Visava apenas o exercício da advocacia. Queria ser advogado.
Ao colar grau na Faculdade Nacional de Direito, alimentava, no inconsciente, a esperança de retornar a Alagoas e, lá, render-me à tradicional vocação familiar, dedicando-me ao exercício da política partidária. Essa perspectiva morreu no nascedouro. Meus planos logo sofreram desvio: uma carioca impediu meu retorno.
Casei-me com Yvette. Emigramos – ela e eu – e nos incorporamos à grande aventura de Brasília. Na cidade recém-formada, engajei-me no universo dos jovens advogados que aqui começavam a vida.
O viés familiar acomodou-se à realidade da nova capital. À míngua de eleições governamentais, envolvi-me no pleito mais importante da Nova Capital: a disputa para o Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil. Foram dez eleições: nove vitórias; uma só derrota.
O Conselho Federal lançou-me desafio que a ninguém é dado rejeitar: a indicação para o Superior Tribunal de Justiça. O desafio era ainda mais sedutor, porque o recém-criado STJ fora concebido para liberar Supremo Tribunal Federal, transformado em corte exclusivamente constitucional.
Para o Superior Tribunal de Justiça, a Constituição reservara o encargo de velar pela segurança jurídica, no âmbito infraconstitucional.
O objetivo que inspirou o constituinte foi assegurar – nos Estados e regiões – o duplo grau de jurisdição, prestigiando os tribunais estaduais e regionais. Somente lhes chegariam causas de maior repercussão quando houvesse incerteza relativa à incidência ou interpretação da legislação federal. Para essas hipóteses foram concebidos o recurso extraordinário e o recurso especial.
Fascinado com a perspectiva de colaborar na consecução de tal objetivo, aceitei a provocação da OAB. Virei magistrado. Incorporei-me ao novo colegiado.
Em 1991, com dois anos de existência, o STJ identificava-se como o Tribunal da Federação e consolidava posição pioneira na estrutura do Poder Judiciário brasileiro. Abandonou velhas técnicas que dificultavam o conhecimento de recursos excepcionais. Mitigou a exigência de prequestionamento e outras dificuldades. Passou a resolver questões federais efetivamente relevantes.
Desgraçadamente, a nova Corte foi vítima de fatal esquecimento. Tanto o constituinte de 1988 quanto o legislador ordinário esqueceram-se de imunizá-la contra velha endemia que aflige o Poder Judiciário brasileiro – o processualismo e a ineficácia das decisões judiciais. À míngua de vacina, os recursos especiais passaram a observar velhas regras, concebidas para os recursos ordinários.
Submetidas aos preceitos arcaicos, as decisões do STJ – em vez de funcionarem como faróis, orientando em definitivo a aplicação do direito federal – reduziram-se a soluções tópicas, cujo alcance limitava-se às partes envolvidas em cada processo.
Geraram-se situações insólitas. Lembro, a propósito, aquela em que – chamado a definir o índice de correção do FGTS – o Tribunal foi compelido a repetir-se em milhares de processos absolutamente idênticos. Houvesse bom senso – uma vez estabelecido o índice de reajuste – todos os julgadores passariam a aplicá-lo.
Estaria realizada a idéia inspiradora do STJ: gerar segurança jurídica e prestigiar as decisões locais. Isso não aconteceu. O STJ transformou-se em terceira instância. Passou então a receber, indiscriminadamente, apelos oriundos de trinta e dois tribunais, espalhados por todo o Brasil.
Os recursos que deveriam ser especiais transformaram-se em ordinários. Assim, os 19.267 processos julgados em 1991 transformaram-se, no ano passado, na inacreditável soma de 330.257 decisões. Dividido esse total pelo número de ministros que integram a Corte, percebe-se que, em 2007, cada um desses magistrados apreciou, em média, 11.901 processos. A enormidade transparece quando lembramos que o art. 106 da Lei Orgânica da Magistratura fixa em trezentos o limite de distribuição anual de processos por magistrado.
Sufocado pelo insuportável peso de tantos encargos, o Tribunal mergulhou em paradoxo semelhante àquele que envolveu o patético Juca Mulato. O trágico personagem de Menotti Del Pichia descobriu que
“Esta vida é um punhal com dois gumes fatais:
Não amar é sofrer; amar é sofrer mais!”
À semelhança do sofredor Juca, o STJ percebeu que, na situação em que se encontrava,
Não julgar é justiça denegar;
Julgar às pressas é arriscar
E com a injustiça flertar
Criado para funcionar como instância excepcional, o Tribunal da Federação desviou-se. Passou a dedicar mais da metade de sua atividade ao trato de agravos resultantes do indeferimento de agravos de instrumento – apelos indiscutivelmente ordinários. Essa circunstância nos relega ao status de corte semi-ordinária.
O exagerado número de feitos intensificou a freqüência dos julgamentos, aumentando a possibilidade de erros, tornando insegura a jurisprudência. Insegura a jurisprudência, instaura-se o império da incerteza. Sem conhecer a correta e segura interpretação dos enunciados jurídicos, o cidadão queda-se no limbo da dúvida. O Superior Tribunal de Justiça deixou de ser o intérprete máximo e definitivo do Direito federal. Desviado de sua nobre função, tende a se tornar um fator de insegurança.
Às vésperas de completar vinte anos, o Tribunal, adolescente, enfrenta crise de identidade. Preso a infernal dilema, vê-se na iminência de fazer uma de duas opções:
– consolidar-se como líder e fiador da segurança jurídica,
ou
– transformar-se em reles terceira instância, com a única serventia de alongar o curso dos processos e dificultar ainda mais a prestação jurisdicional.
Intoxicado pelos vícios do processualismo e fragilizado pela ineficácia de suas decisões, o STJ mergulha em direção a essa última hipótese.
Para fugir a tão aviltante destino, adotamos a denominada “jurisprudência defensiva”, consistente na criação de entraves e pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhe são dirigidos.
Outro artifício é a utilização da informática no exame e julgamento de processos. Em seu exercício, os processos repetitivos são agrupados conforme os temas e recebem decisão padronizada, aplicada pelo computador e firmada por assinatura eletrônica. Substituímos o juiz natural pelo juiz eletrônico.
A crise não é recente. Em 14 de agosto de 1997, presidi sessão da Primeira Turma em que foram decididos mais de quinhentos processos. No curso daquela reunião, a tristeza inspirou-me poema que dizia:
Votos iguais
Recursos inúteis
Da monotonia
O tédio profundo
Faz com que a Turma
Se alheie do mundo
Quinhentos processos
Passaram por nós
Que os deglutimos
Sem dó e sem pena
Cumprindo agenda
Com a indiferença
De férrea moenda
O STJ
Tão bem concebido
Sucumbe à sina
De se transformar
Em reles usina
E cada Ministro
Perdendo o valor
Torna-se um chip
De computador
Quatorze de agosto
Oh! quanto desgosto!
De lá para cá, o problema só fez aumentar: em 1997 ingressaram no STJ 96.376 processos – pouco mais que a quarta parte dos 347.986 decididos em 2007. Desses quase 350.000 recursos, 258.230 – vale dizer: 74% – repetiam questões já superadas pelo Tribunal. Quase todos foram resolvidos pelos computadores. Esses processos saíram dos tribunais locais e vieram a Brasília. Aqui, receberam decisão padronizada e retornaram à origem ou mergulharam no arquivo morto. Foram, simplesmente, moídos. Deles aproveitou-se, apenas, quem os manejou para retardar o cumprimento de suas obrigações.
Lucrativa para o inadimplente, a proliferação de feitos é caríssima para o litigante vitorioso e para todos os contribuintes. Com efeito, o custo da anomalia não é baixo. Nos últimos dois anos, o processamento de tais inutilidades no âmbito do STJ custou aos cofres públicos praticamente 140 milhões de reais. Nesses cálculos – é bom registrar – não se incluíram as despesas com transporte dos autos, entre o tribunal de origem e Brasília nem o retorno deles, após julgamento eletrônico.
Os números revelam que a Justiça brasileira é extrema-mente barata para os litigantes de má-fé e caríssima para os bons cidadãos. Tão dolorosa situação agride a garantia constitu-cio-nal da “razoável duração do processo” (art. 5o, inciso LXXVIII). É necessário reverter esse processo deletério.
O STJ necessita retornar ao rumo traçado pela Consti-tuição Federal.
Não podemos esquecer que o STJ foi criado para assegurar a eficácia e unificar a interpretação do Direito federal. Sua missão é exercer, no âmbito infraconstitucional, o trabalho desenvolvido pelo Supremo Tribunal Federal, no plano constitucional.
Tanto quanto o STF, o STJ é um tribunal excepcional.
Tanto quanto o STF, o STJ é fator de segurança jurídica.
Bem por isso, é necessário preservar essas duas Cortes, para que elas possam bem.
Bem por isso, o constituinte dotou o Superior Tribunal de Justiça de um instrumento em tudo semelhante ao recurso extraordinário – o recurso especial. Os dois apelos sempre observaram um mesmo procedimento. No entanto, nos últimos tempos, o trato do recurso extraordinário afasta-se decididamente daquele reservado ao recurso especial. A Lei no 11.418/06 inseriu no Código de Processo Civil os artigos 543-A e 543-B, condicionando o conhecimento do recurso extraordinário à possibilidade de repercussão geral e reservando tratamento especial para as questões repetitivas.
Graças ao socorro do legislador, o Supremo Tribunal Federal começa a libertar-se da irracionalidade.
O Superior Tribunal de Justiça, inexplicavelmente, ficou ao largo das providências salvadoras. É necessário e urgente que tais instrumentos sejam estendidos ao recurso especial. Com todo respeito ao legislador, a discriminação carece de sentido.
O correto entendimento do direito infraconstitucional é, também, fundamental para a manutenção da segurança jurídica. É possível que sejamos culpados por nosso esquecimento. Certamente fomos inertes na apresentação de projetos tendentes à superação da crise. Deixamos que o Poder Executivo elaborasse textos que não nos atendem.
Purgaremos, logo, nossa mora: A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados tem como um de seus objetivos a geração de projetos capazes de ajustar a anomalia.
Em nome da Corte e em favor de todos os que necessitam de justiça, lanço um apelo a nossos parlamentares: Ponham a nosso alcance os instrumentos salvadores ofertados ao Supremo Tribunal Federal.
Nosso apelo, estou certo, haverá de ser atendido.
Senhora Presidente do Supremo Tribunal Federal!
Permita, após esse doloroso pedido de socorro, que eu faça um sentido agradecimento a todos os presentes.
Ao ver este majestoso auditório lotado, dou graças a Deus, que me permitiu semear e cultivar amizades ao longo da vida.
São todos amigos. Amigos de infância, de escola, de fute-bol, de faculdade, de advocacia, de magistratura, de coração.
Vejo daqui meus primos – tanto aqueles descendentes do saudoso Laurentino Gomes de Barros, quanto os outros oriundos do também saudoso Félix Alves Bezerra Lima.
Amigos e parentes; é impossível pronunciar os nomes de todos. Ao vê-los, emociono-me na certeza de que sou um homem feliz.
A emoção impede-me de dizer algo mais que um amoroso MUITO OBRIGADO!
A meus pais, Carlos e Laura Gomes de Barros, um beijo de agradecimento, com o sabor agridoce da saudade. Considero-os presentes nas pessoas de meus irmãos: Eda, Arnoldo e Yone.
Yvette, doce, autoritária, alegre, severa, prudente, corajosa, é a verdadeira dona desta festa. Graças a ela, livrei-me de erros e tive ânimo para continuar. Ela foi em verdade, minha sorte grande.
Humberto e Debhora; Lícia e Jefferson; Raquel e Fernando; e Carlos Adolfo e Ana Roberta – oito filhos queridos, felizes, cidadãos exemplares.
Pedro Paulo, Fernanda, Guilherme, Carolina, Ana Júlia, Mariana e Fernando – netos; filhos açucarados.
Como tenho orgulho de vocês!
A meus colegas de equipe no Gabinete estendo as alegrias desse momento. Graças a vocês consegui atravessar esses dezessete anos de trabalho duro, sério e correto. Somos vitoriosos!
À Ordem dos Advogados do Brasil presto contas, espe—ran-do haver honrado a confiança que me emprestou. Posso dizer apenas que tudo fiz para honrar o Quinto Constitucional.
Senhores Procurador-geral e Presidente da OAB: ter—m-i-no, falando de minha terra e dizendo:
Minha terra tem coqueiros
Tem cana, tem sururu
Carapeba, genipapo
Caju e maracujá
Tem a beleza das lagoas
E a mais linda cor de mar
Minha terra tem montanhas
Cuja graça emociona
Ao relance do olhar
Tem o Cristo Redentor
Que bem longe e lá do alto
Com os braços bem abertos
O mundo quer abraçar
Minha terra é o cerrado
Onde floresce o pequi
Onde vivem em liberdade
A ema e o lobo guará
Onde há belos palácios
E o Sol em cada ocaso
Dá um show de encantar
Minha terra é Maceió
Que eu amo por inteiro
Mas também é minha terra
O belo Rio de Janeiro
Brasília é por igual
Meu torrão verdadeiro
Maceió me deu à luz
Já o Rio me deu luz
E Brasília finalmente
Expôs-me ao pau-de-luz
Maceió e Brasília
Mais o Rio de Janeiro
A bem da verdade
São as três de uma vez
A minha cidade
Três em uma
Uma em três
A minha cidade
É uma trindade