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Operadoras, contratação de planos de saúde e a restrição em órgão de proteção ao crédito

3 de maio de 2024

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Apresentação

Será que uma empresa de saúde pode negar contrato a um consumidor negativado? Essa foi a indagação envelopada em um processo judicial que chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) que foi instado a responder ao questionamento jurídico.

Quando convidado pela Revista Justiça & Cidadania para escrever um artigo, logo arregacei as mangas e, pensando com meus botões, achei que o caso julgado pela Terceira Turma do STJ, de minha relatoria, poderia ser interessante para o propósito da revista (REsp 2.019.136/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, relator para acórdão Ministro Moura Ribeiro, j. 7/11/2023, DJe de 23/11/2023).

Desde logo, deve ser dito que o caso não recebeu decisão unânime, o que reforça a sua escolha, porque não só o Direito do Consumidor estava em jogo, mas o próprio Direito Civil e mais que tais normas, a Constituição Federal haveria de balizar os direitos confrontados.

A hipótese travada – Como destacado antes, o enquadramento do caso cingia-se ao pronunciamento do Judiciário sobre a possibilidade de um plano de saúde negar a contratação com um consumidor pelo fato dele estar negativado.

Vale a pena salientar que a sentença julgou procedente o pedido da consumidora para condenar o plano de saúde a efetuar a contratação pretendida, vedando qualquer exigência para o pagamento de dívidas diversas para a contratação. Por outro lado, o Tribunal, por maioria, negou provimento ao apelo da prestadora, que apresentou recurso especial, admitido no Superior Tribunal de Justiça.

Esboçado o quadro processual, há que se realçar que a primeira resposta dada pela Relatora foi no sentido de dar provimento ao recurso especial do plano de saúde sob o fundamento de que “nos termos do art. 39, IX, do CDC, a recusa, pela operadora, de contratar com quem possui restrição de crédito não será abusiva, exceto se o consumidor se dispuser ao pronto pagamento do prêmio, prática essa, todavia, que não é usual nos contratos de plano de saúde, nos quais, em regra, o pagamento ocorre mediante prestações mensais”.

Eis, resumidamente, o voto condutor da Ministra Nancy Andrighi: “Na linha do que estabelece o art. 11 da Lei 9.656/1998, que veda a exclusão de cobertura ou a suspensão da assistência à saúde do beneficiário portador de doenças e lesões preexistentes à contratação, o art. 14 determina que ninguém pode ser impedido de participar de planos privados de assistência à saúde em razão da idade ou da condição de pessoa portadora de deficiência. […]

Daí se extrai que a intenção do legislador, corroborada pela ANS, é vedar a seleção, pela operadora, dos riscos inerentes à cobertura assistencial; ligados, portanto, ao objeto do contrato que é a prestação de serviços de assistência à saúde. 

É dizer, não se pode extrair da Lei 9.656/1998 ou da súmula 27 da ANS a obrigação de a operadora contratar com quem apresenta restrição em órgão de proteção ao crédito, a evidenciar possível incapacidade financeira para arcar com a contraprestação devida, sobretudo porque é a receita oriunda da mensalidade paga por todos que financia o custo da cobertura assistencial que se faz necessária para alguns. 

Destarte, ainda que o art. 13, II, da Lei 9.656/1998, autorize a suspensão ou a rescisão unilateral do contrato individual em caso de não-pagamento da mensalidade, certo é que a medida só pode ser adotada quando o inadimplemento supera sessenta dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses de vigência do contrato; até que isso aconteça, a cobertura assistencial é obrigatória, mesmo sem a respectiva contraprestação. 

Noutra toada, o art. 39, IX, do CDC, veda ao fornecedor, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais, recusar a venda de bens ou a prestação de serviços diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, prevenindo, assim, eventual inadimplência. […]

Sob essa perspectiva, infere-se que a recusa, pela operadora, de contratar com quem possui restrição de crédito não será abusiva, exceto se o consumidor se dispuser ao pronto pagamento do prêmio, prática essa, todavia, que não é usual nos contratos de plano de saúde, nos quais, em regra, o pagamento ocorre mediante prestações mensais, sobretudo quando envolvem o pagamento de coparticipação e franquia pelo titular.

Não se olvida do teor do art. 62 da Resolução Normativa 124/2006 da ANS, o qual, interpretado à luz da Lei 9.656/1998 e do CDC, estabelece sanção à infração de natureza assistencial caracterizada pelo impedimento ou restrição da participação de consumidor em plano privado de assistência à saúde em virtude de sua condição de saúde (portador de doença ou lesão pré-existente ou de deficiência), de sua idade, ou, ainda, com base em quaisquer critérios discriminatórios (sexo, cor, raça, etc), dentre os quais não se enquadra o ato de recusa de contratação por existência de restrição de crédito do consumidor.”

A divergência – Fiquei a pensar se tal comportamento se amoldaria com a Constituição brasileira, com o Código Civil de 2002 e com o Código de Defesa do Consumidor. No fundo, a pergunta inquietante dizia respeito à possibilidade de termos no país castas, as que podem contratar e as que não podem porque o contratado simplesmente não quer. Assim pensando, a luta entre norma jurídica e princípio parecia inevitável.

Sabe-se que se tem duas espécies: as regras e os princípios, como ensina Robert Alexy. Na obra de Bruno Maia, é lançada com precisão a separação entre elas, pontuando o autor que “as regras são normas que sempre são satisfeitas ou não satisfeitas, ao passo que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na medida do possível, considerando as possibilidades jurídicas e fáticas existentes”.

O artigo 5o da Constituição Federal brasileira assegura a garantia fundamental do direito à vida, princípio que afasta a possibilidade de a prestadora negar a contratação. Assim pensando, lancei o seguinte voto divergente.

O voto divergente – “O cerne da controvérsia, levantada no nobre apelo, cinge-se em definir se a Unimed está autorizada a negar a contratação de plano de saúde com quem está com o nome negativado em órgão de restrição de crédito. 

Com destacada vênia da em. Ministra Nancy Andrighi, ouso divergir do seu primoroso voto, pelos seguintes fundamentos. 

Dispõe o art. 421 do CC/02 que a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. 

Logo, resta certo que, no trato das relações e negócios jurídicos contratuais, há algo maior e que se põe acima da vontade e da liberdade das partes. 

Não pode a parte, ao seu exclusivo talante, agir pensando apenas no que melhor lhe convém, mormente nos casos de contratos de consumo de bens essenciais como água, energia elétrica, saúde, educação etc. 

Em casos tais sobrepõem-se interesses maiores, visto que não há propriamente um poder de autonomia privada, porque o contratante (em especial o aderente) não é livre para discutir e determinar o conteúdo da regulação contratual. Nem sempre é livre, sequer, para contratar ou não contratar, visto que colocado diante de um único meio de adquirir bens ou serviços essenciais e indispensáveis à vida. 

Nessas condições, portanto, negar o direito à contratação de serviços essenciais constitui evidente afronta à dignidade da pessoa, além de incompatível com os princípios do Código de Defesa do Consumidor (CDC). 

A propósito bem leciona Pietro Perlingieri: “O ato de autonomia privada não é um valor em si; pode sê-lo, e em certos limites, se e enquanto responder a um interesse digno de proteção por parte do ordenamento. Isso deve ser verificado, a cada vez, certificando-se depois, se possa ser, ainda que parcialmente, regulado por fonte que não seja a lei. (…)  Por essa estrada chega-se a apresentar uma pluralidade de regimes contratuais concernentes cada relação, de acordo com o seu objeto, de acordo com o sujeito titular das situações subjetivas e o ambiente no qual se desenrolam”. 

Não há dúvida de que a autonomia da vontade e a liberdade de contratar seguem merecedoras de relevância, mas é preciso lembrar que sempre estarão limitadas ao atendimento da função social do contrato, conforme bem diz a lei. 

Nessa esteira, aliás, essa colenda Turma já decidiu: “[…] O exame da função social do contrato é um convite ao Poder Judiciário, para que ele construa soluções justas, rente à realidade da vida, prestigiando prestações jurisdicionais intermediárias, razoáveis, harmonizadoras e que, sendo encontradas caso a caso, não cheguem a aniquilar nenhum dos outros valores que orientam o ordenamento jurídico, como a autonomia da vontade” (REsp 972.436/BA, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17/3/2009, DJe de 12/6/2009) 

E assim deve mesmo ser, pois conforme leciona Darcy Bessone, tornou-se evidente que é necessário criar um sistema de defesas e garantias para impedir que os fracos sejam espoliados pelos fortes, assim como para assegurar o predomínio dos interesses sociais sobre os individuais.

No caso em exame, o simples fato de o consumidor registrar negativação nos cadastros de consumidores não pode bastar, por si só, para vedar a contratação do plano de saúde pretendido.

Ao submeter-se ao mercado de consumo, o fornecedor não pode se recusar, sem justa causa, a prestar os produtos e serviços oferecidos. E na situação em tela, com todo respeito, não parece justa causa o simples temor, ou presunção indigesta, de futura e incerta inadimplência do preço. 

Sabe-se lá se houve motivo jurídico para a negativação! 

O fato de o consumidor registrar negativação passada não significa que vá também deixar de pagar aquisições futuras, isso sem contar que pode muito bem contar com ajuda de familiares ou amigos, para honrar essas novas aquisições que lhe são essenciais. E ainda, muito mais, em se considerando que o fornecimento (ou o atendimento pelo plano de saúde) só persistirá se houver o efetivo adimplemento das prestações contratadas. 

Negar, por negar a contratação não se afigura digno.

Logo, se a prestação dos serviços sempre poderá ser obstada se não tiver havido o pagamento correspondente, parece certo que exigir que a contratação seja efetuada apenas mediante “pronto pagamento”, nos termos do que dispõe o art. 39, IX, do CDC, equivale, com todo o respeito, a impor ao consumidor uma desvantagem manifestamente excessiva, o que é também vedado pelo art. 39, V, do mesmo diploma. 

Na espécie, ademais, não se está diante de um produto ou serviço de entrega imediata, mas de um serviço eventual e futuro, que embora posto à disposição poderá, ou não, vir a ser exigido, ou conforme já decidiu esta colenda Turma: “[…] O objetivo do contrato de seguro de assistência médico-hospitalar é o de garantir a saúde do segurado contra evento futuro e incerto, desde que esteja prevista contratualmente a cobertura referente à determinada patologia; a seguradora se obriga a indenizar o segurado pelos custos com o tratamento adequado desde que sobrevenha a doença, sendo esta a finalidade fundamental do seguro-saúde”. (REsp 1.053.810/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17/12/2009, DJe de 15/3/2010 – sem destaque no original) 

No dizer de Cláudia Lima Marques, o contrato em questão encerra, assim, espécie de contrato aleatório, cuja contraprestação principal do fornecedor fica a depender da ocorrência de evento futuro e incerto, que é a doença dos consumidores-clientes ou de seus dependentes.

Em tais condições, verificada a natureza aleatória da eventual e futura necessidade de prestar o serviço, a recusa da contratação, ou a exigência de que só seja feita mediante “pronto pagamento”, se mostra de certo modo abusiva, porque excede aos limites impostos pelo fim econômico e boa-fé do direito em jogo (art. 187 do CC/02). 

Ressalta Bruno Miragem que: “o fornecedor não pode, ao se dispor a enfrentar os riscos da atividade negocial no mercado de consumo, pretender selecionar os consumidores com quem vai contratar. Há uma obrigação inerente de atendimento a todos os consumidores que pretenderem contratar, nos termos da oferta realizada ou do que o exercício da atividade profissional do fornecedor permita presumir. Assim, é da natureza da atividade negocial que se realizem contratos altamente vantajosos e outros nem tanto, por parte do fornecedor. Não há, portanto, a possibilidade do fornecedor recusar a contratar na hipótese de se tratar de negócios menos atraentes se e quando, pela sua atividade, propõe-se a fornecer produtos e serviços a quem se interessar, observados – como menciona o próprio CDC – os usos e costumes comerciais. Assim ocorrerá prática abusiva, por exemplo, quando o fornecedor se recusar a fornecer em razão da contratação do serviço lhe ser desinteressante porque de pequeno valor, da mesma forma quando a recusa motivar-se por discriminação ilícita de determinado consumidor”.

Enfim, a contratação de serviços essenciais não mais pode ser vista pelo prisma individualista ou de utilidade do contratante, mas pelo sentido ou função social que tem na comunidade, até porque o consumidor tem trato constitucional, não é vassalo, nem sequer um pária. 

Há situações envolvendo serviços públicos, como a dos autos, onde na verdade há “obrigação de contratar”, pois como diz Orlando Gomes, quem promove a atividade não pode recusar-se a contratar: Se tivesse essa liberdade, arbitrariamente privaria qualquer pessoa do uso de serviço concedido no interesse geral.

Diz o ilustre Jurista ainda que: “Partindo do conceito de Larez relativo à existência de um comportamento social típico (sozialtypischen Verhalten), como nova fonte de obrigações, Bulck admite que, em relação a prestações ou bens vitais, há o dever de não recusá-los. Quando se trata de gêneros de primeira necessidade ou prestações socialmente valorizadas como necessárias à vida de cada cidadão, como o transporte, a eletricidade, a água, o gás e tantas outras, é inadmissível a recusa”.

Necessário, pois, sopesar todas essas nuances, porque como ensinam Nelson e Rosa Maria Nery: “(…) pensar a relação jurídica apenas como conexão dos interesses que sujeitos de direito têm para com outros sujeitos em face de objetos de direito, prende o fenômeno jurídico a limitações decorrentes de seu conteúdo potencial jurígeno, de causa/causado, o que nem sempre é o ponto principal sobre o que deve se prender a análise do intérprete”.

O caso em julgamento exige o encaminhamento das coisas com ponderação dessa “relação de razão, de quantidade, de proporção”, que certamente suplanta o simples vínculo obrigacional, uma vez que o ponto central que prevalecer é o da dignidade do ser humano.

Afinal, como ensina o casal Nery: “Uma ciência que não se presta para prover a sociedade de tudo quanto é necessário para permitir o desenvolvimento integral do homem, que não se presta para colocar o sistema a favor da dignidade humana, que não se presta para servir ao homem, permitindo-lhe atingir seus anseios mais secretos, não se pode dizer Ciência do Direito. Os antigos já diziam que todo direito é constituído ‘hominium causa’”.

Por tais razões, com a mais respeitosa vênia, tenho para mim que a recusa na contratação do plano de saúde foi abusiva e não pode prevalecer. Nessas condições, rendendo minhas reiteradas homenagens à eminente Ministra Nancy Andrighi, divirjo do seu bem lançado voto para negar provimento ao recurso especial.

Majoro em 5% o valor dos honorários advocatícios anteriormente fixados em favor de Patricia, limitados a 20%, nos termos do art. 85, § 11, do CPC.”

Conclusão – O consumidor tem assegurado o direito fundamental de proteção previsto no inciso XXXII, do art. 5o da CF.

Nos contratos de consumo de bens essenciais como água, energia elétrica, saúde, educação etc, não pode o fornecedor agir pensando apenas no que melhor lhe convém. A negativa de contratação de serviços essenciais constitui evidente afronta à dignidade da pessoa, sendo incompatível ainda com os princípios do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

O fato de o consumidor registrar negativação nos cadastros de consumidores não pode bastar, por si só, para vedar a contratação do plano de saúde pretendido.

A prestação dos serviços sempre pode ser obstada se não tiver havido o pagamento correspondente. Assim, exigir que a contratação seja efetuada apenas mediante “pronto pagamento”, nos termos do que dispõe o art. 39, IX, do CDC, equivale a impor ao consumidor uma desvantagem manifestamente excessiva, o que é vedado pelo art. 39, V, do mesmo diploma.

Enfim, a contratação de serviços essenciais não mais pode ser vista pelo prisma individualista ou de utilidade do contratante, mas pelo sentido ou função social que tem na comunidade, até porque o consumidor tem trato constitucional, não é vassalo, nem sequer um pária.

BIBLIOGRAFIA_________________________

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, Trad. Virgílio Afonso da Silva, Malheiros, 2008.

Brasil. STJ. REsp no 2.019.136/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, relator para acórdão Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, j. 7/11/2023, DJe de 23/11/2023.

BESSONE, Darcy. Do Contrato. Teoria Geral. 4a ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

GOMES, Orlando. Obrigação de Contratar. In Revista de Informação Legislativa. V. 5, n. 17, jan-mar/1968, págs. 21/26.

MAIA, Bruno. Direitos Fundamentais e Dignidade da Pessoa Humana: Por que não podemos assumi-la como um “coringa argumentativo?”, Fenomenologia e Direito, EMARF da 2a Região, vol. 12, no 1.

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 9a ed. São Paulo: RT, 2019. 

MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 8a ed. São Paulo: RT, 2019.

NERY, Nelson e Rosa Maria. Instituições de Direito Civil. Vol. I, tomo I – Teoria Geral do Direito Privado. São Paulo: RT, 2014.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. 2a ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 

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