Poder de polícia e fixação de astreintes: Uma visão do Direito Administrativo e do Direito Eleitoral

30 de junho de 2015

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O poder de polícia (ou polícia administrativa[1]) está conceituado, segundo conhecimento doutrinário convencional, no artigo 78 do Código Tributário Nacional (CTN), nos seguintes termos:

Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Apesar da amplitude dos termos utilizados pelo artigo 78 do CTN, a polícia administrativa apresenta-se como um poder estatal não jurisdicional de restringir, condicionar ou limitar bens, direitos e atividades em prol do interesse coletivo.

É bastante comum encontrar em doutrina o fundamento da polícia administrativa no princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse particular[2]. Todavia, em razão da reformulação que este princípio vem sofrendo na atualidade, autores há que sustentam que a base constitucional do poder de polícia mudou: passou a ser a defesa dos direitos fundamentais e da democracia.[3]

Nada obstante o conceito acima delineado, não se pode olvidar que, para bem compreendê-lo, melhor estudá-lo sob dois enfoques ou sentidos: umamplo, em que a polícia administrativa é exercida não só pelo Poder Executivo (com a edição de atos administrativos normativos), mas, também pelo Poder Legislativo, quando impõe, por lei, restrições aos administrados (por exemplo, zoneamento urbano); e um sentido maisrestrito, em que os condicionamentos de polícia seriam praticados apenas pelas pessoas administrativas com personalidade jurídica de direito público, por intermédio de seus agentes.

Importante salientar que não é incomum atribuir-se à polícia administrativa a característica de uma atuação negativado Estado, na medida em que não traduz para a sociedade prestação positiva, tal como acontece, por exemplo, com o serviço público.

A polícia administrativa se expressa por fases, a saber: ordem de polícia (que expressa uma obrigação de fazer ou de não fazer), consentimento de polícia (expressa por meio de licenças, autorizações e permissões), fiscalização de polícia e sanção de polícia. Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto tais fases representam o “ciclo de polícia”.[4]

No campo do direito eleitoral não é diferente o tratamento conferido ao poder de polícia. Segundo o artigo 41 da Lei Federal n. 9.504/1997 (Lei das Eleições), com a redação que lhe conferiu a Lei Federal n. 12.034/2009, compete aos juízes eleitorais o exercício da polícia administrativa para controlar a atividade de propaganda eleitoral, o que significa dizer que esta atribuição não é tipicamente jurisdicional; consiste na atuação administrativa de condicionar o exercício deste direito constitucionalmente garantido aos candidatos nos limites estabelecidos pela legislação, tendo como consequência a legal atuação de fiscalização e de punição. Confira-se o que dispõe o citado artigo 41 e seu parágrafo primeiro:

Art. 41.  A propaganda exercida nos termos da legislação eleitoral não poderá ser objeto de multa nem cerceada sob alegação do exercício do poder de polícia ou de violação de postura municipal, casos em que se deve proceder na forma prevista no art. 4º. (Redação dada pela Lei no 12.034, de 2009)

§ 1o. O poder de polícia sobre a propaganda eleitoral será exercido pelos juízes eleitorais e pelos juízes designados pelos Tribunais Regionais Eleitorais.

Feita a introdução, é hora de afirmar que o tema objeto deste estudo surge com a dúvida sobre a eficácia de uma ordem de polícia, fruto de uma sanção de polícia ou de uma medida de polícia,[5] que imponha ao cidadão ou a uma pessoa jurídica obrigação de fazer ou de não fazer, isto é, se possível, para tanto, ser acompanhada da cominação de astreintes, assim entendidas, segundo doutrina tradicional do direito processual civil, como:

a multa periódica pelo atraso no cumprimento de obrigação de fazer ou de não fazer, incidente em processo executivo (ou na fase executiva de um processo misto), fundado em título executivo judicial ou extrajudicial, e que cumpre a função de pressionar psicologicamente o executado, para que cumpra sua prestação.[6]

Este despretensioso estudo buscará identificar se há base no ordenamento jurídico para fixação das astreintes na via administrativa ou se este instituto é de utilização privativa do Poder Judiciário.

As astreintes são instituto privativo da atuação jurisdicional?

Autores há que sustentam ser o instituto das astreintesde utilização privativa do Poder Judiciário, o que, por decorrência lógica, torna proibida a sua utilização por Poderes outros, sobretudo pela Administração Pública, aqui compreendida como atividade administrativa exercida no Poder Executivo ou nos demais Poderes. Em resumo, para esta corrente de entendimento, todo ato administrativo que fixar astreintes para garantir a execução de uma ordem de polícia é nulo, quiçá inconstitucional, por violação do postulado da separação de poderes, já que o instituto seria de utilização privativa dos juízes no exercício da função jurisdicional típica. Por todos, cite-se a doutrina de Candido Rangel Dinamarco:[7]

É jurisdicional a tutela oferecida mediante a execução forçada e também jurisdicionais as próprias atividades do juiz que a comanda. O resultado institucional desse processo (satisfação do credor) constitui um modo de pacificar as pessoas envolvidas em crises de adimplemento, eliminando os conflitos pendentes entre elas – o que é inerente à função jurisdicional […]

No âmbito da Justiça Eleitoral do Estado do Rio de Janeiro, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RJ) possui precedentes que respaldam a posição doutrinária anteriormente transcrita. Destaque-se, a propósito, a ementa do acordão proferido em 2012, quando do julgamento do Mandado de Segurança n. 267-18, que teve como Relator o Juiz Antônio Augusto Gaspar:

MANDADO DE SEGURANÇA. ARBITRAMENTO DE ASTREINTES E APLICAÇÃO DE MULTA POR ATO ATENTATÓRIO À DIGNIDADE DA JURISDIÇÃO EM SEDE DE PROCESSO ADMINISTRATIVO DE FISCALIZAÇÃO DA PROPAGANDA. IMPOSSIBILIDADE. CONCESSÃO PARCIAL DA ORDEM.

1. O poder de polícia atribuído ao juiz eleitoral responsável pela fiscalização da propaganda não permite a aplicação de sanção pecuniária. O arbitramento de multa e fixação de astreintes exigem a observância ao princípio da demanda, devendo haver provocação do exercício da função jurisdicional, mediante ajuizamento de representação por propaganda eleitoral irregular, assegurando-se o exercício do contraditório e da ampla defesa.

2. A aplicação da penalidade de multa pela prática de ato atentatório à dignidade da jurisdição, prevista no artigo 14, inciso V e parágrafo único, do CPC, igualmente não cabível em sede de procedimento administrativo de fiscalização da propaganda eleitoral, ante a sua evidente natureza judicial.

3. A determinação de retirada do vídeo postado no YouTube não enseja violação a direito líquido e certo da impetrante, eis que se trata de material de autoria anônima, o que é vedado pelo artigo 5o, inciso IV, da Constituição da República.

Pela concessão parcial da segurança, determinando-se a exclusão, nos autos da Petição 150-37, das astreintes e da multa aplicada com fundamento no artigo 14, inciso V e parágrafo único, do Código de Processo Civil.

Entendo, porém, que a matéria merece reflexões e conclusão outras.

Para o deslinde da questão jurídica em análise é necessário fazer, de início, a distinção entre sanção de polícia administrativa e medida de polícia administrativa, para, ao depois, perquirir se o instituto das astreintes é de utilização privativa do Poder Judiciário no exercício de sua função típica ou se poderá ser utilizado no exercício da atividade administrativa de polícia, mormente à luz do poder geral de cautela administrativo expressamente previsto no artigo 45 da Lei de Processo Administrativo Federal e, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, no artigo 43 da Lei Estadual n. 5.427/2009.[8]

Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto, citan­do Otto Mayer, o ins­ti­tu­to da san­ção de polí­cia pode ser compreendido da seguin­te forma:

Finalmente, falhan­do a fis­ca­li­za­ção pre­ven­ti­va, e veri­fi­ca­da a ocor­rên­cia de infra­ções às ­ordens de polí­cia, des­do­bra-se a fase final do ciclo apli­ca­ti­vo, com a san­ção de polí­cia, que vem a ser a sub­mis­são coer­ci­ti­va do infra­tor a medi­das ini­bi­do­ras (com­pul­si­vas) ou dis­sua­só­rias (sua­si­vas) impos­tas pela Administração. Distingue-se, nesta fase, com Otto Mayer, a pena de polí­cia, que é a san­ção coer­ci­ti­va que se apli­ca uma vez con­su­ma­da a infra­ção, do cons­tran­gi­men­to de polí­cia, que é san­ção coer­ci­ti­va apli­ca­da con­tem­po­ra­nea­men­te à infra­ção ou na imi­nên­cia de ser con­su­ma­da. […]. Na ati­vi­da­de polí­cia, dá-se a atua­ção apli­ca­ti­va de san­ção exter­na, ou extro­ver­sa, que a Administração pode impor a todos os admi­nis­tra­dos, em geral, em opo­si­ção à san­ção inter­na, ou intro­ver­sa, que recai ape­nas sobre os ser­vi­do­res públi­cos. São ambas espé­cies do gêne­ro san­ção uni­la­te­ral, impos­ta impe­ra­ti­va­men­te pelo Poder Público, que, por sua vez, se opõe ao gêne­ro san­ção con­ven­cio­nal, que só é apli­cá­vel quan­do con­sen­sual­men­te pac­tua­da.[9]

A medida administrativa de polícia, por sua vez, se diferencia da sanção de polícia. Sanção de polícia, como visto anteriormente, é penalidade aplicável após o devido processo legal e que tem por pressuposto a violação de uma regra (ordem de polícia) prevista em lei; medidas de polícia são atos preparatórios à atuação fiscalizatória e sancionatória de polícia, com o objetivo de preservar a intangibilidade do interesse público ou de garantir a eficácia da ordem de polícia prevista em lei e materializada na decisão administrativa.

Nas palavras de Fabio Medina Osório, as medidas coercitivas de polícia administrativa “podem ser adotadas pela Administração Pública ou por outros Poderes Públicos na aplicação das leis, que não constituem sanções administrativas, embora causem sofrimento e efeitos aflitivos na esfera pessoal do agente atingido”. Segundo o autor citado, “as medidas coercitivas ostentam um elemento teleológico distinto, diferente daquele que caracteriza as sanções administrativas, e, portanto, não estão sujeitas aos mesmos princípios”. E em lapidar arremate, que julgo importante para o deslinde da questão jurídica vertida neste estudo, prossegue o doutrinar dizendo que “as chamadas medidas preventivas podem ser compreendidas nesse âmbito. Tais medidas são adotadas antes de se produzir determinados perigos. O objetivo é, justamente, evitar a ocorrência de determinados fatos, impedir que se consume uma violação da ordem jurídica” (grifei).[10]

Pois bem. Fixadas estas premissas, não tenho dúvidas, respeitadas as opiniões em sentido contrário, de que as astreintespodem ser fixadas em decisões administrativas no exercício do poder de polícia, desde que motivadas e que tenham previsão legal, ainda que genérica, isto porque se inserem no instituto das medidas coercitivas de polícia administrativa. Visam a prestigiar a eficácia de um comando normativo editado para preservar o interesse público, sem o qual se esvairia com a produção de efeitos do ato, tornando a futura sanção de polícia inócua, já que não atingida a finalidade da norma.

A propósito, as astreintesnão são medida de utilização exclusiva e privativa do Poder Judiciário. Elas surgiram para aplicação de juízes como forma de garantia da efetividade de provimentos jurisdicionais, mas não há no ordenamento jurídico vedação a que sejam utilizadas por todos os demais Poderes no exercício da atividade administrativa de polícia, inclusive pelo Poder Judiciário quando do exercício atípico desta função constitucional.

Evidente que as astreintes não terão o atributo da autoexecutoriedade,[11] inerente a maioria das manifestações do poder de polícia da Administração Pública, como também não a detém a sanção pecuniária de polícia (multa). Mas a mitigação deste atributo não lhes torna ilegal; apenas impede que a autoridade administrativa a execute sem a interveniência do Poder Judiciário, vez que exige que a exação se faça mediante executivo fiscal.

Por outro lado, a fixação das astreintes como medida coercitiva de polícia administrativa deve ser admitida como exercício do atributo da coercitividade[12] (também atinente ao poder de polícia), bem assim como instrumento indispensável à efetividade[13] da ordem de polícia estabelecida não só na lei, mas também na decisão administrativa que imponha um fazer ou um não fazer ao cidadão. Em juízo de proporcionalidade/razoabilidade, é o meio adequado e eficaz ao atingimento do fim estabelecido pela norma legal.

As astreintes podem e devem ser inseridas como “medidas de polícia com grau de eficácia máximo”, definidas por Marçal Justen Filho como a capacidade de a Administração Pública “promover medidas concretas e materiais necessárias à satisfação das determinações impostas”, sustentando ser possível e legal que “o ato administrativo já nasça com esse grau de eficácia máximo, em vista da urgência ou gravidade da situação a ser atendida”.[14]

Com efeito, é indispensável informar que a possibilidade de aplicação de multas coercitivas no processo administrativo, denominadas astreintes, encontra amparo em diversos diplomas legais brasileiros. Cumpre destacar, nesse sentido, que a redação do artigo 11 da Lei n. 12.529/2011 (Lei do Cade), seguindo o que anteriormente previa o revogado artigo 9o, inciso IV da Lei n. 8.884/1994, quando estabelece ser da competência do Presidente do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica a adoção de medidas preventivas, fixando o valor da multa diária pelo seu descumprimento. Confira-se:

Art. 11.  Compete aos Conselheiros do Tribunal:

IV – adotar medidas preventivas, fixando o valor da multa diária pelo seu descumprimento;

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) também tem competência para impor a aplicação de multa em caso de descumprimento de suas decisões, conforme previsão dos artigos 9o, II e 11, §11, da Lei n. 6.385/1976. Confira-se:

Art 9o – A Comissão de Valores Mobiliários, observado o disposto no § 2o do art. 15, poderá:

II – intimar as pessoas referidas no inciso I a prestar informações, ou esclarecimentos, sob cominação de multa, sem prejuízo da aplicação das penalidades previstas no art. 11; (Redação dada pela Lei no 10.303, de 31/10/2001)

Art. 11

[…]

§ 11. A multa cominada pela inexecução de ordem da Comissão de Valores Mobiliários, nos termos do inciso II do caput do art. 9o e do inciso IV de seu § 1o não excederá a R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por dia de atraso no seu cumprimento e sua aplicação independe do processo administrativo previsto no inciso V do caput do mesmo artigo. (Redação pelo Decreto no 3.995, de 31/10/2001).

Vislumbra-se, deste modo, que havendo previsão legal (ainda que genérica), não há falar-se em ilegalidade ou em inconstitucionalidade da adoção de medida coercitiva de polícia (astreintes, por exemplo) para forçar a efetividade de uma ordem de polícia que contenha uma obrigação de fazer ou de não fazer, desde que seja praticada por autoridade competente e que esteja devidamente fundamentada.

Astreintes e o Direito Eleitoral

Tendo por base o raciocínio jurídico que legitima a utilização das astreintes nas relações regidas pelo Direito Administrativo, não há óbice à sua aplicação às situações reguladas pelo Direito Eleitoral. Isso porque a Justiça Eleitoral necessita, em face das suas vicissitudes, ser mais célere e eficiente, sobretudo no período eleitoral (que precede ao pleito eleitoral), para que seja garantida a igualdade do pleito, vertente maior da democracia representativa pelo sufrágio.

Não se pode crer que será atingido o fim da lei eleitoral com a simples proibição, por parte de Juízes eleitorais, mormente aqueles incumbidos do árduo dever de fiscalização no período eleitoral, de realização de propaganda eleitoral irregular; será necessário que estas proibições (medidas de polícia ou mesmo sanções de polícia), em muita das vezes, sejam acompanhadas de medidas coercitivas concretas, fruto de decisão objetivamente motivada, para que a sejam efetivamente respeitadas e cumpridas. Do contrário, eventual futura sanção pecuniária pelo ilícito eleitoral perpetrado não será suficiente para atingir o objetivo da vedação legal e da garantia de igualdade de condições para disputa da eleição.

Com efeito, em juízo de avaliação dos interesses, poderá ser mais vantajoso ao candidato violar a lei eleitoral, porquanto pagar multas pode significar mais vantagem considerando que atividade ilícita poderá render ao candidato maior número de votos. A justiça eleitoral não pode permitir prevaleça esta lógica que, em análise simples, representa burla ao sistema eleitoral, que visa, acima de tudo, repita-se, a igualdade na disputa entre os candidatos.

Resta saber, nesse contexto, se há suporte legal para a fixação das astreintes, como medida coercitiva de polícia administrativa por parte dos juízes eleitorais Coordenadores da Fiscalização da Propaganda Eleitoral. A resposta, a meu sentir é, desenganadamente, afirmativa. O parágrafo segundo do artigo 41 da Lei Federal no 9.504/1997 autoriza-a explícita e expressamente ao dispor que, na Justiça Eleitoral, “O poder de polícia se restringe às providências necessárias para inibir práticas ilegais, vedada a censura prévia sobre o teor dos programas a serem exibidos na televisão, no rádio ou na internet”.

Não fosse a Lei das Eleições suficiente para dar embasamento legal à permissão de fixação de astreintes por juízes eleitorais encarregados do exercício da fiscalização eleitoral, o suporte normativo advém, também, do artigo 45 da Lei Federal no 9.784/1999,[15] quando estabelece o poder geral de cautela nos processos administrativos federais, bem assim, da aplicação analógica ao processo administrativo de fiscalização da propaganda eleitoral do artigo 461 e parágrafos do Código de Processo Civil. Sobre a adoção de medidas cautelares com fundamento no poder geral de cautela administrativo, confira-se o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quando do julgamento do ROMS n. 25.104-6, em que se reconheceu à Administração Pública o poder de, cautelarmente, afastar juiz classista de suas funções.

EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO ADMINISTRATIVO. DIREITO DO TRABALHO. JUIZ CLASSISTA. AFASTAMENTO LIMINAR DO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES PELO RELATOR DO PROCESSO ADMINISTRATIVO. POSSIBILIDADE. PODER GERAL DE CAUTELA. ART. 61, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI N. 9.784/99. INTERPRETAÇÃO EM CONJUNTO COM O PRECEITO DO ART. 663, § 2o, DA CLT. DIREITO DO TRABALHO. EQUIPARAÇÃO DOS JUÍZES CLASSISTAS AOS MAGISTRADOS TOGADOS. IMPOSSIBILIDADE. MÁ-FÉ. CONFIGURAÇÃO. DEVOLUÇÃO DOS VALORES PERCEBIDOS ENQUANTO INVESTIDO DAS FUNÇÕES DE MAGISTRADO CLASSISTA. IMPOSSIBILIDADE. VALOR SOCIAL DO TRABALHO. ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DA ADMINISTRAÇÃO.

ART. 1o, IV, E ART. 170, DA CB/88. DECISÃO EXTRA PETITA. NULIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. O poder geral de cautela alcança as decisões administrativas. Embora o preceito do art. 662, § 3o, da CLT determine que as impugnações à investidura dos juízes classistas sejam recebidas no efeito meramente devolutivo, o preceito do art. 61, parágrafo único, da Lei n. 9.784/99 – aplicável ao processo administrativo no âmbito do Poder Judiciário [art. 1o, § 1o] – permite que, em determinadas hipóteses, havendo justo receio de prejuízo de difícil ou incerta reparação, a autoridade recorrida ou imediatamente superior, de ofício ou a pedido, dê efeito suspensivo ao recurso. 2. Os representantes classistas da Justiça do Trabalho, ainda que ostentem títulos privativos da magistratura e exerçam função jurisdicional nos órgãos cuja composição integram, não se equiparam e nem se submetem ao regime jurídico-constitucional e legal aplicável aos magistrados togados. Precedente [MS n. 21.466, Relator o Ministro CELSO DE MELLO, DJ 6.5.94]. 3. A má-fé do candidato à vaga de juiz classista resta configurada quando viola preceito constante dos atos constitutivos do sindicato e declara falsamente, em nome da entidade sindical, o cumprimento de todas as disposições legais e estatutárias para a formação de lista enviada ao Tribunal Regional do Trabalho – TRT. 4. O trabalho consubstancia valor social constitucionalmente protegido [art. 1o, IV e 170, da CB/88], que sobreleva o direito do recorrente a perceber remuneração pelos serviços prestados até o seu afastamento liminar. Entendimento contrário implica sufragar o enriquecimento ilícito da Administração. 5. A decisão judicial extra petita gera nulidade da ordem no ponto em que excede o pedido deduzido pela parte. 6. Recurso ordinário parcialmente provido, para tornar inexigível a ordem do Tribunal Superior do Trabalho – TST no ponto em que determina a devolução dos valores recebidos pelo recorrente a título de remuneração pelo exercício da função de magistrado classista entre 04.05.98 e 08.08.2000. (RMS 25104 / DF – DISTRITO FEDERALRECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA, Relator(a): Min. EROS GRAUJulgamento: 21/02/2006 – Órgão Julgador: Primeira Turma)

Parece não fazer sentido, à luz de uma interpretação razoável e proporcional do instituto da intervenção cautelar, admitir que a autoridade administrativa, no exercício do poder geral de cautela administrativo, possa editar medida de polícia para interditar um estabelecimento comercial, proibir uma propaganda manifestamente ilegal ou mesmo afastar um servidor de suas funções e não possa estabelecer astreintescomo meio coercitivo de cumprimento de uma ordem de não fazer que vise a proteger o interesse público, sobretudo a igualdade em um pleito eleitoral. Mais contraditório ainda se afigura um juiz poder aplicar astreintes no exercício de sua função jurisdicional típica e não poder, com previsão legal neste sentido, aplicá-las no exercício atípico de administrar. Representa uma contradição que depõe contra a efetividade do comando “cautelar” (medida de polícia) emitido pela autoridade administrativa. Mencione-se, a propósito, a doutrina de Miguel Seabra Fagundes:[16]

Quando se dá o choque entre a Administração e o indivíduo, na aferição prática dos pontos em que confinam o poder estatal de exigir e o dever individual de prestação, recusando-se o administrado a cumprir as suas obrigações públicas, torna-se preciso coagi-lo à obediência. Não seria possível admitir que a ação realizadora do direito, confiada à Administração Pública, ficasse sumariamente entrevada pela simples oposição do indivíduo. Tem assim lugar a execução coativa da vontade do Estado.

À autoridade administrativa dá o legislador meios coercitivos, destinados a assegurar o cumprimento das suas determinações. Algumas vezes são leis gerais que estipulam os preceitos e as medidas utilizáveis nos casos de oposição ou desobediência. Outras vezes, mesmo no texto das leis especiais, se determinam as sanções a que dá lugar a sua inobservância. Tais medidas, imprescindíveis a tornar eficazes a norma legal e os atos administrativos, que, sem elas, acabariam desautorados e inoperantes, podem classificar-se em meios diretos e indiretos de coerção administrativa. Os primeiros coíbem à realização imediata da prestação em espécie, tal como foi exigida, compelindo o administrado com o uso de força física sobre as pessoas ou sobre coisa, se se tratar de prestação infungível, ou, nos casos de prestações fungíveis, convertendo-as em outras de diferente natureza, a cuja execução do mesmo modo se obriga imediatamente o devedor

Os meios indiretos (ex. multas impostas pela autoridade administrativa, em qualquer caso de recusa de prestação) sobrecarregam o infrator, majorando a prestação inicialmente exigida, ou criando o dever de outras prestações pela instituição de novas obrigações, além da primitiva. Tendem a forçar o cumprimento da obrigação originária com sobrecargas. Revestem, assim, um caráter apenas intimidativo. (grifei)

Desse modo, não há dúvidas de que poderá e deverá o Juiz eleitoral responsável pela fiscalização da propaganda eleitoral decidir de modo a impedir que ilícitos eleitorais sejam perpetrados, o que pode resultar na fixação de astreintes para “inibir práticas ilegais” por parte dos candidatos.

Por fim, é de se considerar que não sendo as astreintes sanção de polícia (multa), mas sim medida coercitiva de polícia, inaplicável ao caso o entendimento firmado no verbete 18 da Súmula da jurisprudência prevalente no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).[17] Este é, inclusive, o entendimento doutrinário de Luciana Costa Aglantzakis a respeito do tema:

Como deve ser a atuação do Magistrado Eleitoral para controlar o abuso da propaganda eleitoral?

Em razão da específica atuação do magistrado eleitoral no Poder de Polícia, verifica-se a possibilidade de abertura de procedimento administrativo de ofício, para cessar a propaganda irregular, mesmo que seja manifesta ou velada, subliminar, estilo promoção pessoal e justifica-se uma atuação célere e efetiva do juiz em notificar o candidato ou a empresa responsável pela divulgação da propaganda para inibir a sua publicação, sob pena de multa com fulcro no artigo 461 e seguintes do CPC.

Nessa seara o magistrado deve notificar o aludido infrator e a empresa de comunicação responsável para que cesse a propaganda em certo prazo, sob pena de desobediência e multa de astreintes, com base no artigo 461 e seguintes do CPC, pois a sua inação resulta no descumprimento de uma obrigação de não fazer, ou de não entrega, que tem o condão de ferir o princípio da igualdade dos candidatos.

[…]

Depreende-se, então, que o ordenamento jurídico pátrio é possível uma leitura diferenciada da súmula 18 do Tribunal Superior Eleitoral, enquanto o magistrado esteja investido do Poder de Polícia, pois a multa impeditiva do enunciado deve ser somente aquela aplicada após o julgamento de uma representação eleitoral. Grifei. (In: Revista Jurídica TRE-TO,Vol. 4, n. 1, jan./jul. 2010)

 Não há, por isso, fundamento jurídico para impedir que juízes eleitorais responsáveis pela fiscalização eleitoral ou pela Coordenação da Propaganda Eleitoral no período eleitoral de fixarem astreintes para a hipótese de descumprimento do seu comando decisório, desde que tal seja devidamente fundamentado à luz da circunstância concreta que se apresentar, tendo por fundamento, sempre, a intangibilidade do princípio da igualdade entre os candidatos que lancem ao pleito eleitoral.

Conclusão

Em conclusão das ideias lançadas neste artigo, entende-se que as astreintes não são instituto de utilização privativa do Poder Judiciário. Ao contrário, podem e devem ser utilizadas por todos os Poderes da República no exercício da função administrativa, como medida coercitiva de polícia administrativa.

As astreintes serão utilizadas, inclusive, no Direito Eleitoral, com o objetivo de garantir a efetividade de uma ordem de polícia que, na maioria das vezes, tem o condão de impedir a prática de condutas ilícitas. A adoção das astreintes não prescinde de previsão legal (ainda que genérica) e deve ser, sempre, objeto de decisão devidamente motivada, como soem ser as demais medidas que representam o poder geral de cautela administrativo.

 

Notas____________________________________________________________________________

[1]A expres­são “poder de polí­cia” rece­be crí­ti­cas por parte da dou­tri­na ­brasileira, mere­cen­do des­ta­car, por todos, os ensinamentos de Celso Antônio Ban­deira de Mello: “Trata-se de desig­na­ti­vo mani­fes­ta­men­te infe­liz. […]. Além disso, a expres­são ‘poder de polí­cia’ traz con­si­go a evo­lu­ção de uma época pre­té­ri­ta, a do ‘Estado de Polícia’, que pre­ce­deu ao Estado de Direito. Traz con­si­go a supo­si­ção de prer­ro­ga­ti­vas dan­tes exis­ten­tes em prol do ‘prín­ci­pe’ e que se faz comu­ni­car inad­ver­ti­da­men­te ao Poder Executivo. Em suma: racio­ci­na-se como se exis­tis­se uma ‘natu­ral’ titu­la­ri­da­de de pode­res em prol da Administração e como se dela ema­nas­se intrinsecamen­te, fruto de um abs­tra­to ‘poder de polí­cia’”. In: Curso de Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 687. Sobre a neces­si­da­de de se cons­truir um novo con­cei­to para o poder de polí­cia, colha-se a lição de Juarez Freitas: “Destarte, impe­rio­so é repen­sar o poder de polí­cia admi­nis­tra­ti­va ou a limitação adminis­tra­ti­va como o exer­cí­cio de um poder-dever subor­di­na­do aos prin­cí­pios supe­rio­res regen­tes da Administração Pública, que con­sis­te em res­trin­gir ou limi­tar, de modo gra­tui­to e sobre­tu­do pre­ven­ti­vo, a liberda­de e a pro­prie­da­de, de manei­ra a obter, mais posi­ti­va do que nega­ti­va­men­te, uma ordem públi­ca capaz de via­bi­li­zar e de uni­ver­sa­li­zar a exis­tên­cia das liber­da­des.”In: Estudos de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 58.

[2] Por todos, mencione-se a doutrina de Hely Lopes Meirelles: “A razãodo poder de polícia é o interesse social e o seu fundamentoestá na supremacia geral que o Estado exerce em seu território sobre todas as pessoas, bens e atividades, supremacia que se revela nos mandamentos constitucionais e nas normas de ordem pública, que a cada passo opõem condicionamentos e restrições aos direitos individuais em favor da coletividade, incumbindo ao Poder Público o seu policiamento administrativo.” In: Direito Administrativo Brasileiro. 40. ed. atual. São Paulo: Malheiros, [s.d.]. p. 147.

[3]JUSTEN FILHO, Marçal.Curso de direito administrativo.São Paulo: Saraiva, 2005. p. 385.

[4]MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 15.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 444.

 

[5]A diferença entre sanção de polícia e medida de polícia será esclarecida adiante.

[6]CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 22.ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 278.

[7]DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições do direito processual civil. São Paulo: Malheiros, [s.d.]. p. 50 e 51. vol. IV.

[8]Art. 43. Em caso de perigo ou risco iminente de lesão ao interesse público ou à segurança de bens, pessoas e serviços, a Administração Pública poderá, motivadamente, adotar providências acauteladoras.

[9]Curso de Direito Administrativo. Ob. cit., p. 391.

[10]Direito administrativo sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 96-101.

[11]Para José dos Santos Carvalho Filho: “A prerrogativa de praticar atos e colocá-los em imediata execução, sem dependência à manifestação judicial, é que representa a autoexecutoriedade. Tanto é autoexecutória a restrição imposta em caráter geral, como a que se restringe diretamente ao indivíduo, quando, por exemplo, comete transgressões administrativas. É o caso da apreensão de bens, interdição de estabelecimentos e destruição de alimentos nocivos ao consumo público. Verificada a presença dos pressupostos legais do ato, a Administração pratica-o imediatamente e o executa de forma integral. Esse o sentido da autoexecutoriedade”. In: Manual de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 89.

[12]Conforme lição de José dos Santos Carvalho Filho: “Essa característica [coercibilidade] estampa o grau de imperatividade de que se revestem os atos de polícia. A Polícia Administrativa, como é natural, não pode curvar-se ao interesse dos administrados de prestar ou não obediência às imposições. Se a atividade corresponder a um poder, decorrente do ius imperii estatal, há de ser desempenhada de forma a obrigar todos a observarem os seus comandos”. Ob. cit., p. 91.

[13]Nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “a efetividade é atributo do ato administrativo, tanto quanto o é de todo ato jurídico, no sentido amplo, pois é evidente que qualquer ação, ainda que não referenciada ao Direito, pressupõe o alcance de resultados práticos. Sua referência, portanto, é metajurídica, pois se considera efetivo o ato que logra produzir todas as consequências dele esperados por seu autor […] Além de se exigir o atingimento de resultados, tão-somente referidos a cada ato praticado, se pretende uma satisfação estatisticamente referida a todo o grupo, campo ou setor administrativo a que se dirige, capaz de indicar, afinal, uma aptidão coletiva do ato para a produção dos efeitos sociais, almejados pelo direito”. Ob. cit., p. 162.

[14]JUSTEM FILHO, Marçal.Curso de direito administrativo.São Paulo: Saraiva, 2005.p. 395.

[15]Art. 45. Em caso de risco iminente, a Administração Pública poderá motivadamente adotar providências acauteladoras sem a prévia manifestação do interessado.

[16]FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 180.

[17]Súmula – TSE n. 18: Conquanto investido de poder de polícia, não tem legitimidade o juiz eleitoral para, de ofício, instaurar procedimento com a finalidade de impor multa pela veiculação de propaganda eleitoral em desacordo com a Lei n. 9.504/1997.