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Seminário debate desafios e soluções para reduzir a judicialização na saúde

7 de junho de 2024

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Proporcionar acesso à saúde por todos os cidadãos brasileiros, como descreve o Art. 196 da Constituição Federal, é um caminho que passa por uma série de desafios. Um deles é a busca por soluções para reduzir o crescente número de ações ajuizadas nos tribunais de todo o país. De acordo com informações do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus), apenas em 2023, foram ajuizadas 570 mil novas ações, o que representa um aumento de 30% na saúde suplementar e de 12% na pública, em relação ao ano anterior.

O debate entre representantes do Poder Judiciário, especialistas do setor de saúde e demais estudiosos sobre o tema tem representado um importante passo para conhecer problemas, analisar propostas e encontrar respostas para esses desafios. Foi este o objetivo do seminário promovido pela Revista Justiça & Cidadania sobre a “Desjudicialização da Saúde”. Realizado em 9 de maio, na sede da Escola Paulista de Magistratura, em São Paulo, o encontro teve a coordenação acadêmica do Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Paulo Dias de Moura Ribeiro. 

O evento colocou em debate essa problemática, abordando temas sensíveis da atualidade, como a incorporação de novas tecnologias ao sistema de saúde, o combate às fraudes na saúde suplementar, a utilização do sistema NatJus e, claro, as soluções possíveis para reduzir o alto volume de processos ajuizados. Uma iniciativa conjunta da Revista JC com a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), o Fonajus e o apoio da Universidade Santo Amaro (Unisa).

Contextualização do cenário – Na abertura, o Desembargador Artur Cesar Beretta, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), destacou alguns números da Corte paulista. “No ano passado, subiram ao STJ cerca de 8 mil Recursos Especiais, mas ficaram outros 12 mil no TJSP, nessa admissibilidade primeira que é feita pelas presidências da Seção de Direito Privado. Ouso dizer que 60% desse montante diz respeito às questões de saúde”, comentou. 

O Ministro Moura Ribeiro reafirmou os números mencionados pelo Desembargador, lembrando que este é o volume de uma única unidade da federação. “Então imaginem o que chega às portas do STJ. Espero que daqui brotem boas ideias para o nosso grande desafio que é o problema da judicialização da saúde. É de ambientes como este que saem as soluções”, declarou.

O Desembargador Wanderley José Federighi, do TJSP, destacou a problemática das fraudes no sistema de saúde: “É uma questão que tem que ser apurada e combatida. Este seminário será muito útil para discutir este e outros temas e, talvez, chegar a uma solução”. A Supervisora do Fonajus e Conselheira do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Daiane Nogueira de Lira, lembrou que, embora o desafio seja grande, sua expectativa é que o trabalho conjunto e integrado traga resultados. “A judicialização em si não é o problema. Porém, quando se torna excessiva impacta os sistemas público e privado. Desse modo, o acesso à saúde não será eficiente nem seguro para o paciente”, disse.

Novas tecnologias – O painel “Incorporação de novas tecnologias em saúde: desafios e reflexões”, presidido pelo Ministro do STJ Joel Ilan Paciornik, começou com a apresentação da especialista em Regulação de Saúde Suplementar, Ana Cristina Martins, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Ela concentrou sua palestra em um dos principais desafios do setor: o rol de procedimentos e eventos em saúde, que trata da cobertura obrigatória a ser oferecida pelas operadoras de planos de saúde em termos de medicamentos, procedimentos e produtos médicos. 

A especialista destacou a Lei 14.307/2022, que modificou a periodicidade de atualização do rol, o que impacta nos atuais desafios do setor. “Antes, o rol era atualizado a cada dois anos, mas passou a ser atualizado de forma contínua”, ressaltou. Segundo ela, no momento de analisar a incorporação de novos medicamentos ou procedimentos, é necessário considerar algumas questões importantes. Em particular, a que avalia se a equação custos x benefícios clínicos trazidos por essa inovação realmente representará melhores resultados e se esse custo adicional está considerando a sustentabilidade do setor.

O professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ), Denizar Vianna, compartilhou aspectos relacionados à sua passagem pelo Ministério da Saúde, onde atuou de 2019 a 2020. Para ele, um dos caminhos é passar a definir e harmonizar prioridades. “Não existe orçamento inelástico para atender às necessidades da população. Precisamos definir prioridades, mas vários atores devem participar desse processo. Cabe ao sistema de saúde tomar essa decisão”, declarou. Ele ressaltou ainda que a falta de regulação é um terreno fértil para a judicialização, e que o Acordo de Compartilhamento de Riscos (ACR) é uma ferramenta muito útil para fazer avançar as soluções.

O também professor Daniel Wang, da Fundação Getulio Vargas, apontou que nem sempre as inovações se mostram como importantes melhorias para o tratamento, e que a sustentabilidade de todo o conjunto pode ficar comprometida. “Se o Ministério da Saúde passa a incorporar muitos medicamentos de alto custo, essa fatia cresce mais e espreme as demais. Em última instância, quem paga os custos é o usuário do sistema de saúde”, declarou.

Ele apresentou dados de pesquisas que mostram que, na Alemanha, apenas um terço dos tratamentos que entraram no mercado entre 2011 e 2017 possuíam comprovação de benefício clínico frente às alternativas existentes. No Brasil, dos 253 fármacos aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), entre 2004 e 2016, apenas 17% traziam inovação terapêutica. “Não quero deslegitimar nenhuma demanda. Todas são importantes, mas não se pode reduzir a um conflito bilateral quando se trata de um conflito distributivo”, defendeu..

Para Raul Cutait, professor Associado do Departamento de Cirurgia na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), as decisões sobre novas tecnologias e medicamentos não cabem apenas ao médico e ao paciente, pois existe um entorno que diz respeito à indústria e às entidades do setor. Trata-se de um conflito do individual versus o conflito do coletivo. “Todo juiz com quem conversei se sente mal por dizer um não, mas essa decisão não cabe mesmo a ele, e sim a um sistema que tem essa resposta. Assim como quem tem que avaliar os procedimentos e medicamentos é um ultra especialista. Essas decisões têm que vir de um esfera técnica e serem retiradas das costas dos juízes”, ponderou. 

O desafio das fraudes – O Ministro do STJ Antonio Saldanha Palheiro foi o presidente da segunda mesa do seminário, que tratou do desafio das fraudes na saúde suplementar. O Magistrado abriu o painel declarando que “cada vez que se descobre algum tipo de fraude, os fraudadores descobrem outro caminho”. Para ele, uma das soluções é “conscientizar a população”, que muitas vezes pode nem saber que está inserida em uma prática desse tipo. 

Para demonstrar o universo desses esquemas, a Diretora-Executiva da Federação Nacional da Saúde Suplementar (Fenasaúde), Vera Valente, apresentou uma pesquisa do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), que revelou que os prejuízos operacionais em 2022 foram de cerca de R$ 32 bilhões, o que equivale a aproximadamente 12% da receita do setor, que registrou faturamento de R$ 270 bilhões naquele ano. “Essas fraudes se misturam e acontecem simultaneamente muitas vezes. Vão desde o fracionamento de recibos até coisas mais sérias, como a adulteração de procedimentos. Essa oferta de tratamentos não cobertos é descarada, basta ver no Instagram. E ocorrem, sobretudo, na área da beleza”, comentou. 

Analisando o impacto das fraudes no sistema de Justiça, a Juíza de Direito do TJSP, Vanessa Mateus, apresentou dados do relatório Justiça em Números, do CNJ. Um levantamento junto a Varas Cíveis do país mostrou que 30% de todas as demandas se referem à litigância predatória stricto sensu, o que significa cerca de 2,8 milhões de demandas em 2022. “É muito difícil calcular o custo de um processo, porque isso depende de diferentes variáveis, mas feitas as estimativas isso pode corresponder a um prejuízo de R$ 8 bilhões. Quando falamos de demanda fraudulenta falamos de uma demanda gratuita para o litigante, sendo o custo totalmente absorvido pelo Estado e pela população. Este é o tamanho do dreno de dinheiro público apenas no sistema de justiça, que é custeado por nós, mediante impostos”, afirmou.

Para o advogado e professor de Direito Penal, Rodrigo Falk Fragoso, os números mostram que essas fraudes se tornaram mais sofisticadas e mais complexas por uma série de razões. Ele focou sua apresentação nos casos relacionados ao reembolso médico. “No Brasil, não houve uma evolução muito grande, nos últimos cinco anos, na quantidade de beneficiários de planos de saúde, que está em torno de 48 milhões de pessoas. No entanto, em quatro anos dobrou de 6 bilhões para 12 bilhões a quantidade de pagamentos feitos para reembolsos de planos de saúde pelas operadoras”, comentou.

Judicialização: como reduzir? – O painel “Desjudicialização da saúde suplementar” foi presidido pela Ministra do STJ, Daniela Teixeira, e teve início com a apresentação de Glauce Carvalhal, Diretora Jurídica da Confederação Nacional das Seguradoras (CNSeg), que apresentou uma linha histórica do Legislativo e do Judiciário em relação a incorporação de inovações. Também demonstrou as diferenças no processo de atualização do rol, na comparação com Inglaterra, Canadá e Austrália. Sobressai que, no Brasil, o prazo de incorporação fica entre 4 e 9 meses, enquanto na Inglaterra é entre 11 e 14 meses. Enquanto nos demais países existe a possibilidade de negociação de preço e compartilhamento de risco, no Brasil isso não existe.

A coordenadora da Área de Direito da Escola de Negócios e Seguros, Angélica Carlini, abordou a criação das juntas médicas como sendo uma das possibilidades para dirimir dúvidas técnicas dos magistrados. Em sua opinião, poderia ser um núcleo organizado pelo CNJ com apoio do Ministério da Saúde para elencar as principais pesquisas a serem feitas a partir de dados reais coletados nos processos judiciais, sendo os custos desse trabalho divididos entre os setores público e privado. “Assim poderíamos ter evidências sobre temas que hoje desequilibram os cálculos econômicos e atuariais, os fundos mutuais das operadoras de saúde, bem como os orçamentos públicos”, apontou, citando como exemplo o National Institute for Health and Care Excellence (Nice), da Inglaterra. “O nosso ‘Nice’ poderá ter informações preciosas para esclarecer a todos os nossos magistrados, como também advogados, gestores de operadoras e principalmente pacientes e médicos”.

Daniel Tostes, Procurador-Geral da ANS, propôs a criação da formação de uma rede de articulação integrada por todos os Tribunais de Justiça, Ministérios Públicos, Procons e Defensorias Públicas, de forma a transmitir com mais facilidade informações no âmbito da saúde suplementar. “Diminuiríamos a assimetria, que é uma falha conhecida do setor, justamente para que haja uma espécie de pipeline ou fast track em relação a informações úteis para a compreensão não apenas do setor, mas das principais demandas que afligem os beneficiários de planos de saúde”, disse. 

Para Breno Monteiro, Presidente da Confederação Nacional de Saúde, uma solução é realmente criar conselhos nos tribunais, com a presença de médicos especialistas que possam informar e dirimir dúvidas dos juízes, não apenas na simples letra de uma nota técnica. “Como cidadãos, precisamos também pensar nos custos da incorporação de uma medicação”.

O papel dos NATJus – A mesa presidida pelo Ministro Paulo Dias de Moura Ribeiro abordou o tema “NatJus, notas técnicas, avaliações e perícia prévias”. Ana Carolina Morozowski, Juíza Federal do Tribunal Regional Federal da 4a Região, reforçou a necessidade de os pareceres e notas técnicas contarem com linguagem simples para comunicar os desfechos, a eficácia e a segurança da tecnologia em saúde, além da adoção de critérios de padronização e de homogeneidade. “Seria ideal ter, para cada caso concreto, uma avaliação clínica do paciente e uma avaliação de tecnologia em saúde. No Brasil inteiro, temos inúmeros NatJus avaliando a mesma tecnologia, quando seria muito mais fácil ter uma única avaliação para cada tecnologia”, afirmou.

Vanessa Teich, Diretora de Economia da Saúde do Hospital Israelista Albert Einstein, explicou o papel da instituição como NatJus nacional, que recebe para avaliação os casos de urgência, nos quais há uma demanda por medicamentos, procedimentos e produtos médicos contra o SUS. Esse projeto começou em junho de 2019, fruto de uma iniciativa do CNJ com apoio do Ministério da Saúde e o financiamento do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional (Proadi-SUS). 

Desde então, até abril deste ano, foram solicitadas 77.361 notas técnicas, dessas 67.594 foram emitidas (cerca de 87% das solicitadas). O volume de notas técnicas vem crescendo ao longo dos últimos anos e as outras 9.767 solicitações de notas técnicas foram devolvidas por alguns motivos específicos, como documentos fora do escopo da avaliação, por exemplo. No mesmo período (2019-2024), 48% das notas técnicas avaliadas receberam parecer favorável. “Um estudo que está sendo preparado mostra que em 76% dos casos o juiz concordou com o parecer da nota técnica. Sendo 87% nos casos com pareceres favoráveis e 59% de pareceres desfavoráveis.

Encerrando o evento, o Ministro Moura Ribeiro, reforçou que, “com este seminário, estamos tentando plantar algumas sementes de forma que o judiciário não seja tão solicitado. Espero que, doravante, de encontros como esse, surjam essas boas ideias e boas técnicas”, declarou. A mesa de encerramento também contou com Claudia Grieco Tabosa Pessoa, desembargadora do TJSP; Arnaldo Hossepian, diretor-presidente da Fundação da Faculdade de Medicina (FFM); Daiane Nogueira de Lira; Breno Monteiro; e Vera Valente.

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