Edição

Tabeliães de Protesto debatem a desjudicialização

1 de novembro de 2023

Compartilhe:

Com recorde de participação – mais de 600 tabeliães inscritos – aconteceu no Rio de Janeiro (RJ), em setembro, o 19o Convergência, tradicional encontro da comunidade brasileira dos cartórios de protestos. Realizado pelo Instituto de Estudos de Protesto de Títulos do Brasil (IEPTB), o evento debateu as necessárias mudanças para fortalecer a atividade no atual contexto socioeconômico do País, bem como as contribuições do protesto para desjudicializar a recuperação de crédito.

“Os novos horizontes da área têm como pressupostos necessários: a urgente e efetiva nacionalização do protesto; a racionalização do número de tabelionatos de protesto, que foram severamente atingidos pela queda do número de títulos da clientela bancária, apresentada em todo o País, e pelo benefício da gratuidade de emolumentos concedida a credores e apresentantes após 2019; e a ressignificação da qualidade da experiência dos nossos usuários, a partir do uso maciço de tecnologia de última geração”, apontou André Gomes Netto, presidente do IEPTB – entidade que congrega os 3.779 cartórios de protestos de títulos, com mais de 80 mil colaboradores em todo o País.

Para ampliar a contribuição do segmento para a desjudicialização, os tabeliães defendem a aprovação no Congresso Nacional do PL no 4.188/2021, de autoria do Poder Executivo, que institui o “marco legal das garantias”, com mecanismos para estimular a renegociação das dívidas antes que sejam levadas à cobrança judicial – já aprovado no Senado Federal, mas ainda pendente de votação na Câmara dos Deputados. Outra aposta é na aprovação do PL no 6.204/2019, que dispõe sobre a desjudicialização da execução civil de títulos executivos judiciais e extrajudiciais.

“A sociedade e o mercado têm no protesto judicial uma das últimas fronteiras para alcançar a redução da burocracia, do risco e do custo do crédito concedido a empresas e pessoas físicas”, acrescentou o presidente do IEPTB na solenidade de abertura, que contou com a participação, dentre outros, do presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), Desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo, do Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Antonio Saldanha Palheiro, do presidente do IEPTB-RJ, Celso Belmiro, e do presidente da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg), Rogério Bacellar.

Celso Belmiro reforçou a necessidade dos tabelionatos buscarem soluções inovadoras e eficientes para competir no mercado de cobrança de crédito, de tradicional atuação dos cartórios, porém no qual atualmente enfrentam forte concorrência. “Não se trata de utopia, mas sim de sobrevivência. Para essa nova geração, cartório de protesto é igual a burocracia. Mas são essas pessoas, mergulhadas num universo de desinformação a respeito da nossa atividade, que vão decidir como será feita a recuperação dos créditos não pagos. Se não nos adaptarmos e trabalharmos de forma afinada, desapareceremos. Precisamos sair da zona de conforto e nos reinventar, adotar princípios como uniformidade, qualidade de serviço e foco na satisfação da experiência do nosso usuário”, pontuou o presidente do IEPTB-RJ.

Equilíbrio econômico – O primeiro painel foi sobre os avanços do Provimento no 87/2009 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), responsável pela regulamentação da central nacional de serviços eletrônicos compartilhados dos cartórios de protestos, a Cenprot, administrada pelo IEPTB. O debate contou com a participação do Ministro do STJ Antonio Saldanha Palheiro e do Juiz de Direito do TJRJ Alexandre Chini.

O Ministro Saldanha Palheiro elencou os pontos positivos da Cenprot, porém alertou para os riscos da realização de serviços à margem da Central: “A Lei no 13.775/2018 e o Provimento CNJ no 87/2019 foram fundamentais ao implantar a criação de uma única central eletrônica que é a Cenprot. A legislação também fixou uma única entidade nacional como responsável pela sua coordenação, o IEPTB. No entanto, temos notícias de tentativas de criação de associações seccionais desvinculadas do IEPTB e com serviços próprios, o que contraria o princípio da centralização dos serviços pela Cenprot. Essa centralização é importante, pois traz segurança jurídica aos credores, devedores e cartórios de protesto. A criação desses serviços paralelos é um risco imenso para todos tabelionatos”, alertou o ministro.

O Juiz Alexandre Chini também criticou a descentralização dos serviços eletrônicos e a competição entre os tabelionatos, reforçando a importância do respeito à territorialidade para a sobrevivência e o equilíbrio econômico dos cartórios no longo prazo: “Os princípios fundamentais para a atuação dos tabelionatos de protesto são a territorialidade, a autogestão e a preservação do equilíbrio econômico. Isso tudo está lá no Provimento no 86/2019, que com esses princípios quis evitar a competição e o desequilíbrio econômico. Essa competição não vai trazer nenhum benefício para a atividade notarial”, pontuou Chini.

Marco das Garantias – Outro painel reuniu autoridades e tabeliães para discutir os novos serviços e as perspectivas do protesto, no qual a vice-presidente do IEPTB, Ionara Gaioso, apresentou uma análise dos títulos protestados nos últimos anos. Entre 2021 e 2022, segundo ela, o estoque de títulos protestados aumentou exponencialmente, chegando a 14,3 milhões e retomando o patamar de 1,8 milhão de protestos mensais. No entanto, o perfil do devedor mudou. “Essa alteração se deu por causa da falta de crédito no mercado nos últimos anos e pela natureza dos títulos que estão chegando em alto volume nos cartórios. Antes trabalhávamos com o filé mignon, que eram as duplicatas vencidas 15 dias depois. Agora, na grande maioria, recebemos títulos de utilities, como contas de água, luz, etc. São títulos estressados e que estão no final da régua de cobrança. Esse é um grande desafio a ser enfrentado”, afirmou a dirigente.

Para a vice-presidente do IEPTB, o Marco das Garantias pode ser uma resposta para superar essas dificuldades. “Uma das novidades é o ‘protestinho’, que é a negociação prévia com o credor, na qual o cartório começa a negociação no início da régua de cobrança e de forma amigável. Nessa negociação, o tabelião de protesto consegue fazer o acordo de maneira amistosa e, assim, atrair credores que antes consideravam o efeito do protesto muito gravoso. Contudo, não é só porque uma lei foi aprovada que todos os credores irão para o serviço. Vamos ter que fazer muito melhor do que a iniciativa privada e apresentar nosso diferencial para o mercado, que é a segurança dos nossos dados. Temos dados que ninguém tem e uma base mais segura do que qualquer outra no mercado brasileiro, gerada a partir de atos formais e fiscalizados”, explicou Ionara Gaioso.

Integração com o Judiciário – Outro painel abordou o uso da inteligência artificial no Poder Judiciário e nos serviços extrajudiciais. A Juíza de Direito Daniela Bandeira de Freitas (TJRJ) defendeu investimentos em novas tecnologias, como a IA e a mineração de dados, por tabelionatos e tribunais, para reduzir o tempo de tramitação tanto dos procedimentos extrajudiciais quanto dos processos judiciais. Nesse sentido, defendeu ainda a integração entre a Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ-Br) e a Cenprot.
“É necessário que a PDPJ converse com a Cenprot. Assim, será possível automatizar a busca por execuções fiscais, cíveis e criminais, aumentando a funcionalidade das nossas bases de dados e possibilitando uma interoperabilidade entre os sistemas dos cartórios e do Poder Judiciário”, pontuou a juíza.

Desjudicialização – Outro painel discutiu a desjudicialização como instrumento de expansão da base de crédito, com a participação, dentre outros, da Senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), do secretário de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, Marcos Pinto, e do presidente da Febraban, Isaac Sidney, que participou de forma remota. Autora do PL no 6.204/2019, que disciplina a execução extrajudicial civil para cobrança de títulos executivos judiciais e extrajudiciais, atribuindo ao tabelião de protesto o exercício das funções de agente de execução, a senadora apresentou dados do CNJ para defender a aprovação do projeto. Os números, segundo ela, indicam que apenas 15% dos processos de execução atingem a satisfação do crédito, enquanto a taxa de congestionamento é, em média, de 85%, com um tempo médio de tramitação de aproximadamente sete anos.

“Esses números e percentuais ocasionam incalculáveis impactos econômicos negativos para o desenvolvimento do País, assim como frustram os jurisdicionados e criam em suas mentes a descrença na Justiça. É inexorável a verdade de que o sistema faliu e pede socorro. Nesse contexto, o PL traz uma solução eficaz para minimizar o problema: desjudicializar a execução civil, passando a condução dos atos procedimentais para a figura do ‘agente de execução’, função a ser desempenhada unicamente pelos tabeliães de protesto”, explicou a parlamentar.

“Os tabeliães de protesto são muito afeitos aos títulos de crédito, por essa razão, na lógica sistêmica do projeto, é a classe dos extrajudiciais naturalmente mais especializada para a condução qualificada do procedimento executivo. Durante todo o procedimento, a figura do advogado permanece essencial e inafastável, tal como ocorre perante o Poder Judiciário, bem como a percepção dos seus honorários, que com a efetividade vão receber mais rápido e acalmar os seus clientes”, acrescentou Soraya Thronicke.

Custo da inadimplência – Após apresentar um panorama sobre a concessão de crédito no Brasil, o presidente da Febraban disse ser “equivocada” a percepção de que a elevação do custo do crédito se deve à concentração dos bancos e às altas taxas de juros. Segundo ele, os verdadeiros motivos são a alta inadimplência, a baixa efetividade das garantias, os altos custos operacionais e a elevada carga tributária. Ele elogiou ainda as proposições do PL do Marco das Garantias e do PL da execução extrajudicial de títulos executivos.

Segundo ele, esses projetos têm “melhorias que devem contribuir para a redução do risco de crédito, como soluções negociais que podem ser intermediadas pelos cartórios de protesto, a possibilidade de anotação dessas dívidas e dos tabeliães de notas atuarem como mediadores e conciliadores, a extensão da garantia da alienação fiduciária e a busca e a apreensão extrajudicial de veículos”, enumerou Isaac Sidney.

Desenrola – O secretário de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, Marcos Pinto, avaliou que o debate econômico no Brasil erra ao focar muito nos aspectos macroeconômicos, quando há problemas de produtividade que dependem de avanços microeconômicos – como uma arrecadação mais eficiente, o combate à evasão escolar, a superação do déficit de investimentos em infraestrutura e um crédito menos oneroso.

Pinto concordou com a avaliação do presidente da Febraban de que a principal causa do elevado spread bancário no Brasil é a inadimplência. Fez coro também aos que defenderam a aprovação dos projetos de lei que trazem ferramentas para promover a desjudicialização: “Nenhum país do mundo desenvolvido continua cobrando dívidas por meio do Judiciário, que não é o lugar adequado para isso, os juízes não tem o tempo e o apoio administrativo necessário para fazer esse tipo de coisa”.

Responsável pelo programa Desenrola, que ele considera “a maior experiência de renegociação de dívidas dos consumidores na história da humanidade”, explicou que hoje há 70 milhões de brasileiros com dívidas negativadas e que o Judiciário não tem condições de tratar da execução dessas dívidas, a maior parte delas com baixos valores, que não justificam sequer os custos administrativos dos tribunais. “Não há como resolver esse problema por meio do processo de execução tradicional. Precisamos investir na resolução desses problemas por meios extrajudiciais e usando tecnologia”, opinou.

Procedimento híbrido – Em outro painel, o Ministro do STF Luiz Fux comentou que a desjudicialização por meio da atividade notarial “não significa senão ir além dos tribunais, uma outra justiça que pode ser feita de forma coexistencial com a Justiça tradicional, evidentemente respeitados os princípios constitucionais, o devido processo legal, o contraditório, a legalidade e a ampla defesa”.  Para ele, é muito importante que a Justiça tenha a humildade necessária para reconhecer que a atividade notarial tem feito um trabalho exemplar no sentido de desafogar a função jurisdicional tradicional. Dentre as virtudes da desjudicialização do processo de execução extrajudicial, o Ministro Fux destacou a especialização dos cartórios de protesto ao lidar com a cobrança de dívidas.

Em relação ao PL no 6.204/2019, contudo, o ministro previu possíveis controvérsias em situações pouco usuais relacionadas, por exemplo, à determinação do quantum debeatur em casos de penhora, aos prazos de prescrição e decadência, às hipóteses de impenhorabilidade de bens, à desconsideração da personalidade jurídica, às fraudes de execução e a outras situações que podem suscitar dúvidas e questionamentos quanto à execução feita pelos cartórios de protesto.

O presidente da Comissão de Direito Notarial e Registral do Conselho Federal da OAB, Tiago de Lima Almeida, concordou com as ponderações feitas pelo Ministro Fux, porém disse que já é possível avançar na ação coordenada entre o Poder Judiciário e os cartórios de protesto, seu braço extrajudicial, por meio de “procedimentos híbridos”.

“Alguns pontos ainda merecem uma reflexão mais detida e concordo com as colocações trazidas pelo Ministro Fux, mas enquanto advogado vejo que poderíamos avançar com uma conexão quase imediata, quando do início da execução extrajudicial, entre o tabelião de protestos e o Judiciário. Na dúvida, o tabelião de protesto tem a obrigação de chamar o Judiciário para saber como avançar. Isso por si só traria uma gama de soluções que hoje nos parece com uma dificuldade que talvez travasse o andamento do projeto de lei. Inclusive, o próprio projeto de lei deixa claro que estamos tratando de um procedimento híbrido. Não é um procedimento que não possa em algum momento ser migrado pelo Judiciário. Pelo contrário, o PL deixa muito claro que o tabelião pode literalmente ir até a página dois. Enfrentado qualquer cenário de litigiosidade, cabe ao Poder Judiciário solucionar”.