Violência digital contra a mulher: domo legal e tecnológico

12 de março de 2024

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A violência contra a mulher é um fenômeno histórico e mundial, que alcança distintas classes sociais e se origina em fatores sociais, culturais, políticos e econômicos. A Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos reconheceu formalmente a violência contra as mulheres como uma das formas de violação dos direitos humanos diretamente relacionados à proteção da dignidade humana. 

O Pacto Global da ONU, que tem o Brasil como signatário, implementou 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que integram a Agenda 2030, dentre eles a igualdade de gênero.

No ambiente digital, as condutas praticadas contra a mulher adquirem novos contornos que ferem sua dignidade, integridade física e psicológica. A ONU alerta que a violência tecnológica está se tornando cada vez mais complexa no cometimento de crimes de gênero de forma digital, exigindo medidas urgentes de proteção para as vítimas. As múltiplas formas de violência contra meninas e mulheres nos meios digitais são praticadas, invariavelmente, por parceiros abusivos e grupos misóginos, encobertos sob o manto do anonimato. Cometem-se importunação sexual, assédio, perseguição, humilhação, difamação, agressão, sextorsão, stalking, cyberbullying, doxing, e pornografia de vingança.

Domo legal – A rede legal de proteção dos direitos da mulher é constantemente fortalecida tanto para o ambiente físico, quanto o digital. A Constituição Federal eleva a promoção do bem de todos como objetivo fundamental, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3o, V). Protege o mercado de trabalho da mulher (art. 7o, XX) e a participação política mínima em partidos políticos e recursos do fundo partidário (art. 17, § 7o). Iguala os direitos e as obrigações de homens e mulheres (art. 5o, I), também em relação à sociedade conjugal (art. 226, § 5o), criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de relações familiares (art. 226, § 8o). 

O ecossistema jurídico é composto por um robusto conjunto de normas, de ordem civil e penal, em defesa dos direitos da mulher. O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) obrigou os provedores de aplicações a retirar imediatamente os conteúdos íntimos de caráter privado, e a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) criou instrumentos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, alterando o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal. 

Os delitos informáticos tipificados na Lei 12.737/12 tiveram as penas majoradas pela Lei 14.155/21. O feminicídio foi classificado como circunstância qualificadora do crime de homicídio e incluído no rol de crimes hediondos, quando envolver violência doméstica, familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher (Lei 13.104/15). 

Os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, de cena de estupro de vulnerável e de cena de sexo ou pornografia estão previstos na Lei 13.718/18, enquanto o crime de perseguição contra mulher por razões da condição de sexo feminino integra a Lei 14.132/21. 

A intimidação sistemática virtual – cyberbullying – se configura quando a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos online ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real. A ação foi descrita como crime pela Lei 14.811/2024, que também alterou a Lei dos Crimes Hediondos, para incluir o crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio ou à automutilação, realizado por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitido em tempo real. 

O Estatuto da Criança e do Adolescente foi revigorado, adotando o combate à produção, venda e distribuição de pornografia infantil, bem como criminalizou a aquisição e a posse de tal material e outras condutas relacionadas à pedofilia na internet (Lei 11.829/00). 

Com tais previsões foram inseridos no Código Penal novos artigos: 121, VI e § 2o-A, I e II e seguintes; 138, 139 ,140 e 146; art. 147 e 147-A, 154-A e B; 158, 213, 215 e A, 216 A e B, 218-C e, 266, §§ 1o e 2o. A Lei da Igualdade Salarial entre homens e mulheres (Lei 14.611/23) objetiva diminuir as desigualdades de remunerações e foi regulamentada pelo Decreto 11.795/23 e pela Portaria do Ministério do Trabalho 3.714/23.

Há uma série de iniciativas legislativas em trâmite no Senado Federal que almejam punição mais rigorosa para crimes sexuais (Projetos de Lei 5.993/2023, 5.994/2023, 8/2024 e 9/2024). 

Dentre os instrumentos internacionais na luta pela igualdade de gênero e para a liberação da discriminação vale destacar a convenção intitulada Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979), aprovada pela ONU e assinada pelo Brasil. Chamada de “Convenção da Mulher”, ela se fundamenta na obrigação de assegurar a igualdade e eliminar a discriminação de gênero nos campos político, econômico, social e cultural. 

A Conferência Mundial dos Direitos Humanos (Viena, 1993) reconheceu que os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais: a violência de gênero, assim como todas as formas de assédio e exploração sexual, é incompatível com a dignidade e o valor da pessoa humana e deve ser eliminada. 

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – conhecida como Convenção de Belém do Pará 1994 – identificou que a violência contra a mulher constitui violação dos direitos humanos, liberdades fundamentais e ofensa contra a dignidade humana (ratificada pelo Decreto 1.973/96). 

A ONU Brasil encampou, ainda, a campanha Una-se: Investir para Prevenir e Responder à Violência contra Mulheres e Meninas, pelo fim da violência contra mulheres e meninas. 

Domo Tecnológico – O meio digital se tornou um ambiente propício para a prática de violência contra mulheres. O aumento de agressões facilitadas pela tecnologia impacta especialmente mulheres e meninas em todo o mundo. Porém, é unânime o reconhecimento de que as inovações tecnológicas são importantes ferramentas de enfrentamento. 

A Comissão sobre a Situação das Mulheres da ONU reconhece o papel crítico da tecnologia, da inovação e da educação na era digital, para acelerar a igualdade de gênero. Por sua vez, a Unesco defende maior participação das mulheres na inovação digital global, encorajando a nova geração de jovens mulheres a atuar nos campos de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (Stem). O Fundo de População da ONU (UNFPA) reconhece que as vítimas de violência de gênero digital precisam de medidas urgentes de proteção. 

Idêntico é o posicionamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao concordar que as tecnologias favorecem a proteção a mulheres vítimas de violência. Os dispositivos ajudam a evitar novas agressões, aumentam o sentimento de segurança das mulheres, reduzem as ocorrências letais e permitem a prisão em flagrante dos agressores. 

Diversas iniciativas brasileiras aplicam soluções digitais, através de ações, programas e plataformas, como: Nossas.Org, ISA.bot, Todos por Uma, Projeto Glória, Frida, Salve Maria, Tornozeleira eletrônica, Botão do pânico, S.O.S., PLP 2.0, e Juntas. 

Vigorosos movimentos sociais de coletivos femininos promovem iniciativas e disponibilizam ferramentas digitais para garantir a proteção de direitos e acesso a recursos tecnológicos. Vale citar o programa Você não está sozinha, os projetos Justiceiras e Caretas, além de aplicativos disponibilizados pelo Magazine Luíza e pelo Mete a Colher.

A vida digital não é um território livre do alcance das leis. A discussão sobre a regulação das redes nunca foi tão necessária para a satisfação dos direitos femininos. 

Nada envelhece tão rápido quanto a tecnologia e a internet é sempre impactada pelo surgimento de novas ferramentas, que, ao mesmo tempo que trazem soluções, criam novos riscos. É o que vem ocorrendo no atual estágio da inteligência artificial, enquanto não se concretiza sua regulação no Brasil. Quando trabalhada sem transparência e boa governança, pode alimentar o algoritmo com vieses discriminatórios, preconceituosos e estereotipados, ocorrendo a discriminação algorítmica. 

A caminhada pela efetivação de direitos consagrados é longa e cheia de desafios. Mas não se pode deixar de reconhecer o papel da tecnologia como importante aliada na criação de soluções inovadoras, práticas e eficientes na defesa dos direitos da mulher. A tecnologia que propaga desigualdades é a que também pode resolver esses problemas. 

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