A dimensão da Justiça do Trabalho

3 de maio de 2024

Juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região /Diretor de Comunicação Social da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho

Compartilhe:

Ao Estado cabe promover a solução coercitiva dos conflitos a ele submetidos, enquanto exercício de poder. Trata-se aqui da jurisdição, função exercida pelas Magistradas, Magistrados e Tribunais, que diz respeito à entrega da prestação de jurisdição pelo Poder Judiciário.

Em razão da necessidade de imprimir sistematicidade e eficiência à organização do aparato estatal específico, o exercício da jurisdição é dividido racionalmente entre distintos órgãos, a partir de critérios de especialização do conhecimento, de territorialidade, entre outros, fixando-se assim as denominadas competências. Para Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero, “o Estado para exercer a função jurisdicional precisa de vários juízes, juízos e tribunais, principalmente em um país com a dimensão territorial do Brasil, pelo que, para que a ‘justiça’ possa ser ordenada e efetivamente exercida, é necessário que os vários casos conflitivos concretos sejam classificados e agrupados de acordo com pontos que têm em comum, que os processos que a eles servem de instrumento têm em comum ou que as pessoas que neles estão envolvidas possuem em comum, organizando-se a função jurisdicional na medida dos casos que forem agrupados” (Curso de Processo Civil, Revista dos Tribunais, 2015).

Os critérios de repartição da jurisdição decorrem, portanto, não do simples querer do legislador, mas de uma exigência real, calcada em razões de ordem prática e lógica, que visam a imprimir funcionalidade ao Poder Judiciário no contexto em que ele se encontra inserido. Na história brasileira, não foi diferente com a necessidade de uma Justiça com especialização do saber em torno do trabalho humano.

No Brasil, a urgência de destacamento de órgãos para resolver os conflitos trabalhistas surgiu a partir da década de 30 do século passado, com o advento do processo de industrialização do país e as demandas dele naturalmente decorrentes. Inicialmente, foram criadas as Juntas de Conciliação e Julgamento e as Comissões Mistas de Conciliação, de natureza administrativa e vinculadas ao Poder Executivo. As Constituições de 1934 e 1937, por seu turno, trataram da instituição de uma Justiça do Trabalho, embora sem promover sua estruturação e tampouco a qualificando como aparato jurisdicional. Apenas a Constituição de 1946 introduziu efetivamente a Justiça do Trabalho no capítulo destinado ao Poder Judiciário, prescrevendo que a ela competia: “conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores, e, as demais controvérsias oriundas de relações do trabalho regidas por legislação especial (art. 123)”.

A enunciação desta competência da Justiça do Trabalho restrita, na essência, à relação entre os sujeitos da relação de emprego remanesceu até ao texto original da Constituição de 1988, que se referia a “conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores(…)”. Em 2004, entretanto, o reformador constituinte resolveu ampliar significativamente a competência da Justiça do Trabalho, não apenas acrescentando no texto constitucional questões satélites da relação de emprego, mas alterando o núcleo essencial da competência, tratando agora do processamento e julgamento das “ações oriundas da relação de trabalho (…)”.

Em artigo de 2005, o Ministro Lelio Bentes Corrêa advertiu que não havia como confundir “relação de trabalho” – enquanto termo genérico e abrangente de qualquer relação em que se verifique a prestação de serviços por uma pessoa física a terceiro – com a relação entre trabalhador e empregador. Fazendo-se necessária, para esta última, a presença de um empregador, seria intuitiva a exigência da relação de emprego (CLT, art. 3º). Prosseguiu que, “assim como não se admite que a lei contenha expressões inúteis, a sua alteração também não poderá resultar inócua” (In: CORRÊA, Lelio Bentes. A reforma constitucional e a Justiça do Trabalho: perspectivas e desafios na concretização do ideal legislativo. In: COUTINHO, Grijalbo Fernandes; FAVA, Marcos Neves (coord.). Justiça do Trabalho: competência ampliada. São Paulo: LTr, 2005, p.300)”.

Fato é que, ao longo de sua história, embora institucionalizada no cenário da Segunda Revolução Industrial – alcançando ali o modelo fordista de fábrica horizontalizada, com a absorção de todo processo produtivo e o início da automação –, a Justiça do Trabalho brasileira modernizou-se diante de todos avanços subsequentes experimentados pelo mundo do trabalho no dinamismo de seu desenvolvimento, a cada grande salto tecnológico.

Passou pela Terceira Revolução Industrial e suas novas possibilidades tecnológicas de tráfego rápido de informações, aplicando a norma jurídica diante das questões decorrentes dos impactos da reformulação da organização capitalista em um mercado globalizado: um novo paradigma de estoque zero, movimentos de dispersão geográfica e de descentralização da produção, inclusive pela terceirização e outras formas de divisão do trabalho.

Chega nos dias de hoje, enfim, ao cenário de enormes transformações oriundas da Quarta Revolução Industrial (Revolução Digital), requalificando-se intensamente para tratar das controvérsias laborais derivadas da realocação de postos de trabalho, da substituição de profissões, das demandas por novos bens e serviços e da obsolescência de tantos outros. No grande salto tecnológico, a Justiça do Trabalho vivencia e posiciona-se diante dos fenômenos da inteligência artificial, do teletrabalho, da descentralização da prestação de serviços indefinidamente por um grande número de pessoas, do trabalho humano intermediado pelas plataformas virtuais.

A Justiça do Trabalho encontra-se corretamente dimensionada ao enfrentamento de tais desafios? Uma resposta pode ser extraída a partir dos números obtidos e analisados pelo Conselho Nacional de Justiça.

Conforme o relatório “Justiça em Números 2023”, do CNJ, a Justiça do Trabalho conta com uma estrutura composta pelo Tribunal Superior do Trabalho, 24 Tribunais Regionais do Trabalho e 1.569 Varas do Trabalho, ramo presente em 607 municípios, o que corresponde a cerca de 10% dos municípios brasileiros. Tal capilaridade demonstra a capacidade estrutural deste ramo especializado em permitir acesso à Justiça em um país com território de dimensões continentais e com profundas desigualdades socioeconômicas. O Estado-juiz atuante diante da população mostra-se como premissa fundamental para que a prestação jurisdicional possa ser reclamada e os conflitos trabalhistas sejam assim dirimidos.

A resposta do jurisdicionado ao exercício da cidadania é igualmente quantificável. O relatório aponta que, em 2022, a Justiça do Trabalho recebeu 3,2 milhões de casos novos, superando-se com folga os 2,9 milhões de 2021, ano bastante afetado pela pandemia, especialmente diante da retração econômica imposta em escala global. Tal cifra trabalhista de 2022 representou a relevante proporção de 10,1% dos 31,5 milhões de casos novos em todo o Poder Judiciário, destacando o peso dos conflitos trabalhistas na realidade brasileira e a urgência da garantia das condições de trabalho decente, produto final institucionalmente assegurado.

Em atendimento a esta demanda, a Justiça do Trabalho entregou seus resultados. Ainda segundo o relatório, 3,3 milhões de processos foram baixados por este ramo especializado em 2022, representando 10,9% dos 30,3 milhões de processos baixados em todo Poder Judiciário, aqui considerados os processos remetidos para outros órgãos judiciais competentes, desde que vinculados a tribunais diferentes; remetidos para as instâncias superiores ou inferiores; arquivados definitivamente; ou em que houve decisões que transitaram em julgado e iniciou-se a liquidação, cumprimento ou execução.

Nos limites deste breve ensaio, é possível concluir que a Justiça do Trabalho mostra-se suficientemente dimensionada em termos estruturais, no mínimo necessário a cumprir seu papel institucional. Por um lado, mostra-se acessível e efetivamente acessada pelos jurisdicionados, com capilaridade e formação atualizada para compreensão da complexidade do trabalho humano em suas múltiplas formas; por outro, entrega eficientemente a prestação jurisdicional de qualidade, proporcionando a paz social no âmbito das relações de trabalho brasileiras.

Conteúdo relacionado: