Anatomia de uma carreira: Gaps de gênero pela lente das magistradas

12 de março de 2024

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O ano de 2023 foi marcado por uma decisão histórica em prol da equidade de gênero em todos os níveis do Poder Judiciário brasileiro: foi instituída, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a política de cotas para Magistradas, servidoras e terceirizadas. 

O momento coincide com o prêmio Nobel à economista Claudia Goldin por sua pesquisa que explicita os impactos do chamado “gender gap” nas carreiras. A professora de Harvard desvendou dinâmicas por meio das quais a ascensão profissional e remuneratória das mulheres ocorre em patamares inferiores aos homens, ainda que em muitas áreas, as mulheres apresentem maior escolaridade. O estudo quantificou o ônus da parentalidade e identificou, entre outros fatores, a permanência de mulheres em “postos de menor ambição”, sobretudo em razão da necessidade de maior disponibilidade à família, e obstáculos para a ocupação de postos de maior visibilidade.

No CNJ os debates sobre a paridade centraram-se na pertinência e na constitucionalidade da medida. Manifestações contrárias à política de paridade levantaram suposta ausência de pesquisas, e ilegitimidade do órgão para dispor sobre ascensão na magistratura.

A legitimidade do CNJ para formular políticas para a carreira da magistratura foi reconhecida com base na ADC no 12, na qual o STF assentou a competência do CNJ para editar normas primárias que concretizem princípios constitucionais. A constitucionalidade decorreu da harmonização das regras atinentes à promoção aos Tribunais ao princípio da igualdade de gênero, uma vez que, como registrado por Daniel Sarmento, não seria facultado ao intérprete negligenciar “os efeitos discriminatórios que a aplicação mecânica dos referidos preceitos constitucionais vem ensejando”, e este sim seria um estado de inconstitucionalidade incompatível com valores como isonomia material e dignidade da pessoa da humana.

Em 1995, foi realizada a pesquisa “Perfil do magistrado brasileiro” com 3.927 magistrados. Conduzida pelo sociólogo Luiz Werneck Vianna e pelos professores Maria Alice Carvalho, Manuel Palacios Melo e Marcelo Baumann Burgos, as entrevistas exploradas à luz dos refinamentos da sociologia do direito serviram de base à indispensável obra “Corpo e alma da magistratura brasileira”.

Um dos pontos analisados foi a participação feminina. Considerado o contexto histórico, a investigação não se voltava à paridade, mas um dos principais achados noticiava um processo de feminização da magistratura (ou lado da juvenilização), como reflexo de uma sociedade que se democratizava e “cujo movimento de mudança social tenderia a conferir maior expressividade numérica a essas tendências”. Identificou-se uma preferência das bacharelas pelas carreiras públicas e pela magistratura, como forma de evitar “os riscos de uma competição desigual em um mercado, ainda dominado, basicamente, pela cultura masculina”. A correlação entre vida profissional e vida familiar já indicava maior impacto da carreira na vida pessoal das Magistradas do que na dos juízes, e o dobro de Juízas solteiras, separadas e divorciadas em relação aos juízes.

Ao longo dos anos, levantamentos sobre o déficit de participação feminina vêm sendo sistematicamente publicados. No Conselho Nacional de Justiça, este mapeamento passou a integrar a publicação anual do Relatório Justiça em Números. Os números apontam 39% de Juízas titulares, 25% de desembargadoras, e tão somente 18% nos Tribunais Superiores. Se observado o marcador raça, as discrepâncias são ainda mais acentuadas. As séries históricas de dados mostram, entretanto, que a participação de mulheres nos Tribunais praticamente não tem se alterado ao longo dos anos: em uma década inteira – de 2008 a 2018 – a ampliação do percentual de desembargadoras não chegou a 1%, passando de 24,9% para 25,7%.  E, em 2024, ainda há Tribunais que não possuem nenhuma desembargadora.

Ao lado de diagnósticos uníssonos em apontar que o decurso do tempo não tem sido capaz de equacionar o déficit da presença de mulheres em patamares superiores da magistratura, seguiram-se mapeamentos do chamado teto de vidro, que na definição de Sciammarella se caracteriza por “uma barreira invisível mascarada pelo discurso da igualdade e da neutralidade do profissionalismo, que limita a ascensão profissional das mulheres”.

Entre os esforços para identificar o teto de vidro na magistratura federal, destaca-se a pesquisa realizada pela comissão Ajufe Mulheres, na qual foram ouvidas 185 Juízas federais, cujas percepções apontam que a magistratura afeta mais a vida pessoal das Magistradas do que dos seus pares homens; desafios da dupla jornada e deslocamentos geográficos; percepções de que membros do Judiciário de instâncias superiores se identificam mais com candidatos homens.

Publicado em 2023, o relatório da pesquisa ‘Perfil das Magistradas brasileiras: perspectivas rumo à equidade de gênero’ (ENFAM/AMB) ouviu 1.643 Magistradas de todos os segmentos de justiça e regiões do país. Tomando-se a vivência das julgadoras, articulam-se aspectos profissionais, familiares e sociais no esforço de compreender perfis, dinâmicas e possíveis obstáculos à ascensão. As entrevistas revelam os complexos atravessamentos amalgamados na construção da subjetividade e da trajetória profissional das Magistradas de todo país.

A partir da lente das Magistradas, sobressaem percepções sobre dificuldades de participação e manifestação diretamente afetadas pelos chamados micromachismos; impactos da divisão sexual do trabalho doméstico e papéis de gênero desempenhados no âmbito privado e familiar; dinâmicas relacionadas às interações formais e informais como catalisadores de carreiras para magistrados homens e barreiras à ascensão de Magistradas.

Entre as respostas mais impactantes, tem-se que: 64,7% das Magistradas afirmam já terem sofrido, no exercício da magistratura, constrangimento ou discriminação no trabalho derivado do fato de serem mulheres; 70% das Magistradas afirmaram sofrer manterupting nas suas manifestações; mais da metade se vê impactada por papéis de gênero.  Evidenciou-se, em contrapartida, um forte anseio das entrevistadas por medidas que fomentem maior participação de mulheres na administração dos tribunais, nas escolas judiciais, associações e comitês. As questões relacionadas à capacitação e ao incremento de participação nessas searas tiveram a adesão de mais de 80% das respondentes.

Os resultados deste autorretrato da magistratura feminina brasileira corroboram achados já identificados noutras pesquisas e acrescem aspectos qualitativos ao revelar uma magistratura sendo construída com maior apropriação de conceitos e letramento de gênero, identificação de dinâmicas que sobrevalorizam interações profissionais e sociais (trânsitos nem sempre franqueados às mulheres) e acabam por conformar posições de desvantagem. De outro lado, sobressai o crescente ímpeto de reivindicação de oportunidades para ascensão e para ocupação de espaços de poder em igualdade de condições.

As pesquisas evidenciam, portanto, que, ao lado dos aspectos quantitativos do déficit de presença feminina nos patamares superiores da magistratura, resta ao Poder Judiciário o desafio de assegurar um ambiente institucional materialmente isonômico como forma a assegurar uma participação feminina plena e efetiva.

NOTAS_______________________

BONELLI, M. Gloria; OLIVEIRA, F. Luci de. Mulheres Magistradas e a construção de gênero na carreira judicial. Novos estudos Cebrap, v. 39, n. 1, p. 143-163, abr. 2020.

Comissão AJUFE Mulheres: Nota Técnica 01/2017: resultados da pesquisa para se conhecer o perfil das associadas da AJUFE.

Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário. Brasília: CNJ, 2019.

Participação feminina na magistratura: atualizações. Brasília: CNJ, 2023. 

Relatório de pesquisa: perfil das Magistradas brasileiras e perspectivas rumo à equidade de gênero nos tribunais. Brasília: ENFAM/AMB, 2023.

PEREIRA, Jane Reis G.; OLIVEIRA, Renan M. de. Hércules, Hermes e a Pequena Sereia. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, DF, v. 8, n. 2, p. 877-910, 2018.

SARMENTO. Daniel. Parecer Mulheres no Poder Judiciário e Discriminação de Gênero: criação de política de ação afirmativa para acesso de Juízas aos tribunais de 2o grau como imperativo constitucional.

SCIAMMARELLA, Ana Paula de O. Magistratura e Gênero: uma análise da condição profissional feminina no Judiciário fluminense. Autografia, 2020.

WERNECK V., Luiz; CARVALHO, Maria Alice R. de; MELO, M. Cunha; BURGOS, M. Baumann. Corpo e alma da magistratura brasileira. 1997.

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