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Em defesa da permissão de ônibus

5 de março de 2005

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Não temos o hábito da crítica judiciária e até vivemos repetindo que “decisões judiciais se cumprem e não se discutem”. Na verdade, os veredictos dos juízes e dos tribunais se cumprem e…se discutem. Nos autos pelos advogados das partes, fora dos autos, pela sociedade que não raro é uma litisconsorte oculta sobre a qual as conseqüências das decisões vão recair de forma direta ou indireta.

Os tribunais, por sua vez, de tanto trabalhar com a superestrutura jurídica acabam, às vezes, esquecendo a infra-estrutura da realidade. Sobre esta é que se constrói aquela. Segundo as leis da dialética, ambas interagem de modo que a realidade influi no direito e o direito influi na realidade. Por isso que a sábia Lei de Introdução ao Código Civil, recomenda que, ao aplicar a lei, o juiz estará atento aos fins sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum [Decreto-Lei n.v 4.657/42, art. 5º].

Essa visão filosófica vem a propósito de mais de uma dezena de decisões do Superior Tribunal de Justiça, segundo as quais as permissões de transporte coletivo por ônibus, não originárias de licitação, não fazem jus ao equilíbrio econômico-financeiro do serviço público que exercem e, por isso, violada essa regra pelo poder concedente, as empresas não têm direito a qualquer indenização. Tais decisões afetam profundamente a vida das cidades e das permissionárias que asseguram o funcionamento dos equipamentos urbanos. Com isso, recebem os poderes concedentes uma carta de impunidade e um salvo-conduto para a arbitrariedade.   Segundo o Tribunal, só as concessões, de natureza contratual, derivadas de licitações, podem invocar o direito ao equilíbrio da equação entre seus encargos e seus custos. “Inexiste direito à indenização, porque a exigência legal de realização de licitação não foi cumprida”[Resp 443.796], embora anterior à atual Constituição.

Por esse raciocínio, a VARIG e outras concessionárias aéreas que nunca conjugaram o verbo licitar, jamais poderiam ter vencido as ações de indenização que propuseram contra a UNIÃO perante o mesmo Tribunal. Nenhuma delas nasceu de licitação alguma. Na essência, a ação proposta contra a União pela VARIG é a mesma que dezenas de empresas permissionárias promoveram contra o poder concedente de Minas Gerais. Mas a solução dada pelo STJ ao Estado mineiro foi diferente da que proferiu contra a União.Negou a estas o que deu àquela.

Disse o STJ em um de seus Acórdãos: “Na hipótese em exame, independentemente da natureza da permissão [condicionada ou não], inexiste direito à indenização, porque a exigência legal de realização de licitação não foi cumprida”. Falou o Tribunal como se a mensagem do art. 175 da Constituição valesse para o passado e não para o futuro.

O culto à licitação, inspirado no advérbio “sempre” constante do fraseado do art. 175 da Constituição, passou, assim, a receber novos adeptos em quase todas as turmas do Tribunal. Enquanto o Tribunal unge os novos deuses emergentes da Constituição de 88, dá a extrema unção a centenas de permissionárias [100.000 ônibus] que, em todo o Brasil, operam sob o regime condenado como precário, ilegal e destituído de proteção jurídica. Além de mais 60.000 ônibus interestaduais e intermunicipais, grande parte submetidos também ao regime jurídico de permissões [Decreto 2.521/98; antes. 952/93].

“A permissão – registrava em vida Hely Lopes Meirelles – vem sendo a modalidade preferida pelas administrações federal, estaduais e municipais para delegação de serviços de transporte coletivo a empresas de ônibus nas respectivas áreas de sua competência, muito embora o Código Nacional de Trânsito [Lei 5.108, de 21.9.66] admita também a concessão e a autorização”.

Por isso mesmo, outro não menos eminente mestre, Miguel Reale, em parecer já antigo, meditando em torno da realidade dos transportes coletivos e do seu regime jurídico, disse-o, em parecer, e após, em livro, que “a permissão (…) tem semelhanças, quanto ao seu exercício, com a concessão”. No seu “Direito Administrativo”, o professor repete: “Poder-se-ia dizer que a permissão se constitui como se fora autorização e é exercida como se fora concessão, o que explica que nossos legisladores ora empreguem um vocábulo, ora outro, ou os dois indiferentemente, demonstrando a falta de clara determinação conceitual”[Direito Administrativo, Rio, 1969, p. 155]. Referindo-se a “empresa permissionária de transportes urbanos”, afirmou o seu “inconteste direito de não ver ameaçado o equilíbrio econômico-financeiro que normas legais e regulamentares expressamente tutelam e preservam”.

“Trata-se – diz a prof. Maria  Sylvia di Pietro -, de um empreendimento que, como outro qualquer, envolve gastos; de modo que dificilmente alguém se interessará, sem ter as garantias de respeito ao equilíbrio econômico-financeiro.”.

Aos críticos do status contratual que a Constituição conferiu às permissões vale lembrar que, no âmbito dos tribunais, o Supremo Tribunal Federal muitas vezes aplicara os princípios protetores da concessão ao regramento da permissão mesmo quanto às não-condicionadas. No MS 18.787-SP, a Corte rejeitou a alegação de precariedade da permissão como se vê da seguinte ementa: “Permissão para exploração de serviço de transporte coletivo. Serviço instalado e em funcionamento. Impossibilidade de anular-se a permissão, unilateralmente, sem forma nem figura de juízo” [Ac. de 7.10.68. Em outro precedente, o S.T.F. estabeleceu que “não pode o prefeito cassar permissão administrativa para exploração de serviços funerários auxiliares sem inquérito regular e com cerceamento de defesa das interessadas”. Comentando essa decisão, Hely Lopes Meirelles expressa: “Vê-se,  por esse Acórdão, que mesmo os permissionários de serviço público, que estão sujeitos a uma ingerência mais intensa do Poder Público, não podem ter sua permissão cassada e sua atividade interditada sem processo e ampla defesa”. Da mesma forma pronunciou-se o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em 30 de julho de 1.965.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por sua vez, enfatizou que “o objetivo da norma constitucional é fundamentalmente assegurar a continuidade e a qualidade dos serviços públicos, cujo interesse social é igual nas concessões como nas permissões”. No Acórdão, o Tribunal diz, com clareza: “Vê-se que é irrelevante à aplicação do preceito constitucional, a qualidade de permissionárias das empresas de transporte urbano”. Pontes de Miranda, já nos “Comentários à Constituição de 1.969, discursando sobre o art. 167 daquela Carta, alertava que “a regra jurídica do art. 167, I, tem grande relevância, porque qualquer concessão, autorização ou contrato concessivo ou autorizativo, fica sujeito ao respeito ao art. 167, I. A própria cláusula inserta em ato estatal unilateral, bilateral ou plurilateral que dispensa a futura adequação obrigatória do serviço seria ofensiva do art. 167, I, e, pois, nula”, o mesmo valendo para os demais incisos daquela disposição inclusive quanto ao princípio do equilíbrio econômico-financeiro dos serviços.

Disse-o ainda Reale em outra passagem: “Não me parece haver dúvida, por conseguinte, de que o titular de uma chamada ‘permissão de transporte coletivo’ goza de um status jurídico de natureza bilateral, insuscetível de ser alterado por ato da Administração que não se concilie com os preceitos regulamentares próprios, sob pena de lesão a uma situação jurídica constituída, isto é, a um ‘direito subjetivo’, para empregarmos a terminologia tradicional.”.
Já o ex-presidente do STJ, Ministro Américo Luz, assim se expressou: “Isto quer dizer que a prestação do serviço público é feita em nome do poder público, ‘sob condições alteráveis unilateralmente pelo estado’, só que, além de a tarifa dever-se cobrar ao usuário do serviço público permitido, há a obrigação de manter-se o equilíbrio econômico-financeiro inicial, no caso desrespeitado pela administração quando altera a permissão quebrando aquele equilíbrio.”.

A contratualidade da permissão não é, hoje, questão doutrinária, mas determinação constitucional. Os manuais podem continuar a dizer que a permissão é precária. Melhor diriam que, depois de 88, a permissão de serviço público deixou de ser precária, mesmo aquelas que nasceram da informalidade e nela se consolidaram com o batismo constitucional. Logo, é constitucional a obrigação básica, fundamental e inafastável do poder público relativa à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos serviços.

Por tudo isso, marcha na contra-mão da boa doutrina as recentes decisões do STJ no sentido de que a permissão nada garante, sequer o equilíbrio econômico-financeiro dos serviços, quando não precedida de licitação, mesmo que se trate de permissão anterior a 1.988.

Contribui para tal equívoco o preconceito doutrinário contra as permissões. Embora reconhecidas no texto do art. 175 da Constituição -que lhe deu roupagem contratual em homenagem aos sessenta milhões de brasileiros que utilizam diariamente os transportes urbanos por ônibus-, a Lei 8.987/95, no art. 40, ao regulamentar o art. 175 da Carta Magna, despiu desavergonhadamente as cândidas vestes das permissões, nelas postas pelo legislador constituinte, afirmando que, mesmo sendo contratuais, as permissões eram precárias e revogáveis unilateralmente pelo poder concedente. A doutrina passou desatenta sobre essa grave violação constitucional. A norma regulamentadora traindo a norma regulamentada ao estabelecer que o contrato…não é contrato.

Não é de admirar, portanto, que os Tribunais acabem dando ouvidos ao legislador ordinário que, ao regulamentar a norma editada pelos constituintes, transgrediram o texto, violaram a história, voltaram as costas para a realidade e acabaram condenando o sistema essencial de transporte coletivo como um subproduto da atividade econômica, cheio de obrigações de toda ordem e sem direito algum.

Por isso, impõe-se lembrar que as decisões judiciais não se destinam a um país virtual, mas a um país real. O país real é transportado na roda de centenas de permissionárias todos os dias, para permitir que os cidadãos exerçam seus direitos individuais de moradia, emprego, educação, saúde, lazer. São as cidades que se deslocam, apenas nos transportes urbanos, nessa “roda gigante” da economia do país. Não entraram, como também não o fez o transporte aéreo, pelas portas da licitação, até mesmo porque, antes de 1.988 as porteiras estavam abertas ao convite do poder público.

Por isso, o Tribunal ao recusar legitimidade às permissões de ônibus, profere uma decisão alienada da realidade e condena as permissionárias a uma prisão aberta num presídio de insegurança máxima de onde só poderão sair mediante um derradeiro apelo ao Supremo Tribunal Federal. Como se espera que ocorra, porque, no fundo, a Constituição foi negada e a realidade foi esquecida.