Segredo X Cumplicidade

3 de maio de 2024

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Segredo e delito de comissão futura na deontologia comparada –

O atual Código de Ética da Advocacia adota o termo sigilo para abrir o capítulo correspondente à proteção do segredo, instituto essencial da atividade advocatícia. No artigo 35, que inaugura o escasso Capítulo VII do Código, lê-se que “o advogado tem o dever de guardar sigilo dos fatos de que tome conhecimento no exercício da profissão”. Se dissesse segredo ao invés de sigilo, poderia parecer que os significados seriam idênticos. Walter Ceneviva considerava ambas as expressões sinônimas []. O Código de Ética atual, porém, preferiu sigilo a segredo. A palavra segredo foi, em razão dessa preferência, cortada do atual texto de 2015. Mas essa supressão deliberada não quer dizer que o Código baniu a figura do segredo. Na verdade, trata-se de um rigorismo terminológico. Sigilo e segredo são como continente e conteúdo. Não são exatamente a mesma coisa. A palavra sigilo vem do Latim sigillum que tem o significado de selo ou sinete, aposto para assegurar a inviolabilidade de documento ou seu envoltório. Segredo vem de secretum, particípio passado de scernere, que quer dizer separar. Segredo é algo separado, que deve ser mantido isolado de outras coisas, longe de olhos e ouvidos alheios. Assim, o sigilo tem a finalidade de proteger o segredo; este nada mais é que objeto daquele. Segredo é, resumidamente, o conteúdo da manifestação de vontade do confidente, o emissor da confidência, e sigilo o dever profissional de guardar o segredo por parte do receptor da confidência. Sigilo é o selo que garante a inviolabilidade do segredo. Não obstante, o título segredo versus cumplicidade poderia ser sigilo versus cumplicidade sem comprometer a compreensão da questão que diz respeito aos delitos de comissão futura. O observador, no caso, o leitor pode olhar o objeto observado do viés do sigilo ou do segredo. Como queira.

Segredo e delito de comissão futura na deontologia comparada –O atual Código não contém previsão expressa do tipo em apreço. Tal constatação, contudo, não retira a importância da questão, prevista no Código Ibero-americano, firmado pelo Brasil. De qualquer modo, a Ética, como o Direito, não se esgota na literalidade dos códigos. A hermenêutica apenas dá seu primeiro passo no texto, mas seu caminho só termina no plano dos princípios e significados. Na Deontologia comparada, o tipo é previsto como infração autônoma. No Côde des Professions francês se lê, sob o título “Les intentions criminelles”: “Si un client demande un avis à un professionnel dans le but de commettre un crime, la rencontre et l’information partagée ne sont pas protégées par le secret professionnel.” No artigo 60.4, o princípio do sigilo é limitado quando se caracteriza quando “risque sérieux de mort ou de blessures graves menace une personne ou un groupe de personnes identifiable et que la nature de la menace inspire un sentiment d’urgence”. No Reino Unido, “os Tribunais insistem em sua jurisprudência de que o privilégio profissional do advogado não é aplicável quando a comunicação é feita com o objetivo de o cliente obter aconselhamento sobre a prática de um crime”[]. No Codice Deontologico Forense italiano, atualizado em 2019, o artigo 28 n.4 “b” prevê a regra derrogatória do sigilo nestes termos “e’ consentito all’avvocato derogare ai doveri di cui sopra qualora la divulgazione di quanto appreso sia necessaria:b) per impedire la commissione di un reato di particolare gravità”.

Deontologia Ibero-Americana – Mais próximo a nós, o tema é tratado pelos autores argentinos Ofélia Rosenkranz, Roque Caivano e Gisela Mayer. Dizem eles que o advogado pode revelar a intenção criminosa “cuando se trate de una información referida a la posible comisión de un crimen, en la medida en que sea necesario para prevenirlo o evitarla[]. Revelar a intenção criminosa, porém, não autoriza revelar o autor do propósito, cuja identidade deve ser preservada. Osvaldo R,. Agatiello, Horacio G. López Miró e Enrique V. del Carril, na “Ética del Abogado”, advertem que constitui exceção ao princípio do sigilo profissional o “delito de comissão futura”, invocando a jurisprudência norteamericana[]. 

Já no Código de Ética Profesional de la Abogacía Iberoamericana se lê: “Si un cliente comunica a su abogado la intención de cometer un delito, tal confidencia no es materia de secreto ni está amparada por el mismo; por lo cual, agotados los medios disuasivos, podrá hacer las revelaciones necesarias para prevenir el ilícito o proteger las personas y biens en peligro”[]. Esse diploma foi aprovado por 23 países, entre os quais Portugal e Espanha e, da América latina, Brasil, Argentina, Uruguai e vários outros. Raul Horacio Viñas, comentando a regra, alerta que constitui justa causa autorizadora da revelação do segredo pelo advogado “cuando el cliente pretenda hacerlo cómplice – al menos moralmente – respecto de un acto delictuoso futuro ou del propósito de dañar a terceros, pues no se puede prestar adhesión a un fin ilegítimo”[].

Procedimento sugerido por Maurice Garçon – O famoso advogado francês do século passado sugeria a adoção de um procedimento a ser seguido nesses casos, propondo que, para evitar a prática de um crime, o Bastonário, chefe da Ordem, alertado pelo advogado, “avisaria indiretamente a quem dele seria vítima, sob condição de que ninguém pudesse saber de onde proviera a informação”[]. Essa intermediação da Ordem parece ser o melhor caminho por conferir total impessoalidade ao ato, proteger o advogado e dele retirar a responsabilidade única da medida. À Ordem caberia avaliar a procedência da notificação às pessoas ou instituições afetadas, cabendo-lhe a última palavra no sentido de, aprovada a consulta do advogado, fazer a comunicação da intenção criminosa sem apontar o autor, cuja identidade mesmo a ela não seria revelada, omitindo, também, às pessoas notificadas, a identidade do próprio advogado. A identidade do confidente continuaria, assim, sempre resguardada pelo advogado como segredo protegido pelo dever do sigilo. Esse procedimento dependeria, por sua vez, de regulamentação pelo Conselho Federal. 

Necessidade de capitulação no atual Código – O tipo delito de comissão futura não tem previsão expressa no atual Código de Ética. O ideal seria que o Conselho Federal da OAB introduzisse o tipo relacionado ao delito de comissão futura, adotando a mesma redação do Código Ibero-Americano, como artigo 37-A: “Se um cliente comunica a seu advogado a intenção de cometer um delito, tal confidência não é matéria de segredo nem por ele está amparada; por isso, esgotados os meios suasórios, poderá fazer as revelações necessárias para prevenir o ilícito ou proteger as pessoas e bens em perigo”. 

A disposição mais aproximada desse tema é a do artigo 37 do Código, que dispõe: “o sigilo profissional cederá em face de circunstâncias excepcionais que configurem justa causa, como nos casos de grave ameaça ao direito à vida e à honra ou que envolvam defesa própria”. Mas o foco, não é difuso, não centrado na figura da intenção de delito de comissão futura, o traslado do texto do Código Ibero-Americano para o atual diploma tem a vantagem de ser extremamente didático ao deixar claro que basta a intenção, o intuito, o propósito criminoso – que, como indiferente penal, está apenas na antessala da existência possível – para autorizar a derrogação parcial do dever de sigilo. Osvaldo Agatiello, Horacio López-Miró e Enrique del Carril enfatizam que o direito de defesa não inclui a proteção ou encobrimento das intenções delituosas: “el deber de secreto profesional tiene por fundamento asegurar el derecho de defensa, donde la privacidade es uno de sus pilares, pero no puede extenderse a los casos de verdadera complicidad o encubrimiento”[]. 

Não há, de outra parte, nenhuma contradição com a conduta do advogado que, diante do fato consumado, é procurado para patrocinar a defesa do autor do ato incriminado, por este negado, dele recebendo, em confiança, a confissão da autoria[]. O que não pode é comprometer-se a prestar seu auxílio profissional para delitos que o confidente tem em projeto, ainda que meramente cogitado ou in fieri. 

A indiferença diante da intenção ilegítima é uma forma de placitação silenciosa à realização do ato violador da ordem jurídica. Por isso, o advogado não pode ser contratado para defender delitos futuros, embora tenha toda a legitimidade para assistir o acusado da comissão de qualquer crime, por mais hediondo que seja. A essência da atividade está na pessoa para cujo socorro é chamado. O advogado trabalha post factum, depois de consumado o evento para o qual não concorreu. Nunca ante factum. 

Em qualquer hipótese, mesmo quando defende o criminoso, o advogado não defende o crime cometido. Se patrocina a defesa do traficante, não está, por isso, apadrinhando o tráfico. Pode efetuar a defesa do sonegador, não da sonegação. Ao assegurar a defesa do golpista de 8 de janeiro, não está legitimando o golpe por ele tentado[]. O advogado não defende a prática do crime, mas a pessoa humana acusada do seu cometimento. Se silencia diante da intenção, concorre, por consciente omissão, com o crime que poderia ser evitado. Por isso, é importante conhecer os limites da fronteira entre o dever de sigilo e a proteção do segredo diante da hipótese de delito de comissão futura. Proteger a intentio, nesse caso, caracteriza uma forma de cumplicidade. 

O advogado não pode aceitar o mandato de quem lhe anuncia que vai cometer o delito e, previamente, deseja contratá-lo para a defesa que será necessária uma vez realizado o fato. Daí a importância de uma definição clara, específica, expressa, no Código de Ética, para esse tipo de conduta profissional diante de delitos de comissão futura e da regulamentação do procedimento a ser adotado, de forma que sejam preservados não apenas a identidade do autor da intenção, mas o nome do próprio advogado e isso só poderá ocorrer pela regulamentação que o Conselho Federal da Ordem poderá adotar para preservar os valores em jogo, o dever do sigilo e a proteção do segredo.

Notas_____________________________

1 CENEVIVA, Walter. Segredos profissionais. Malheiros editores. S,P. 1.996.

2 D.A.O., Edward (An update on the Report by D.A.O. Edward, QC) The professional secret, confidentiality and legal professional privilegie in Europe: “The Courts insist on its case law that legal professional privilege is not applicable where the communication is made for the purpose of the client obtaining advice regarding the committing of a crime…”

3 ROSENKRANZ, Ofélia; CAIVANO, Roque e MAYER, Gisela. Ética Profesional de los Abogados, Ed. Abeledo Perrot, B. Aires, p 98.

4 AGATIELLO, Osvaldo R,.MIRÓ, Horacio G. López e DEL CARRIL, Enrique V. Ed. Platense-Abeledo Perrot, B. Aires,p. 125.

5 MARTINEZ VAL, José Maria. Ética de l Abogacía, Ed. Bosch, Barcelona, 1987, p. 137.

6 VIÑAS, Raul Horacio. Ética y Derecho de la Abogacía y Procuración. Ed. Pannedille. B. Aires. 1972, p. 206.

7 GARÇON, Maurice. O Advogado e a Moral. Armênio Amado Editor. Lisboa. 1963, p. 111.

8 AGATIELLO, Osvaldo R,.MIRÓ, Horacio G. López e DEL CARRIL, Enrique V. Ed. Platense-Abeledo Perrot, B. Aires. La Ética del Abogado, ed. Platense-Abeledo Perrot. B. Aires, p.204.

9 COSTA, Élcio Ferreira, in Deontologia Jurídica – Ética das Profissões Jurídicas, Ed. For., Rio, 1996, p. 185.

10 No âmbito da OAB/RS, o compromisso juramentado do advogado inclui o de defender a Constituição e a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito e, entre outros, o de pugnar pela boa aplicação das leis.

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