O Exame Nacional da Magistratura

3 de maio de 2024

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A instituição do Exame Nacional da Magistratura – Enam representa uma virada de página na história da Justiça brasileira. Uma das primeiras iniciativas do Ministro Luís Roberto Barroso como presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a ideia, aprovada no final de 2023, é uma bandeira cara ao magistrado desde quando ele atuava como advogado constitucionalista e defendia uma nova filosofia na seleção dos candidatos, pautada na igualdade de oportunidades, na transparência das ferramentas e, sobretudo, em uma metodologia de avaliação apta a identificar pessoas vocacionadas para além do saber jurídico. 

O exame, instituído pela Resolução CNJ 531/2023, que alterou a Resolução CNJ 75/2009, consubstancia-se em etapa preliminar de habilitação a todos os candidatos aos concursos de magistratura nacional. 

Em processo seletivo organizado pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), sob supervisão do CNJ, com a colaboração da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat), os candidatos serão arguidos em prova objetiva sobre os seguintes ramos: Direito Constitucional, Direito Administrativo, noções gerais de Direito e formação humanística, Direitos Humanos, Direito Processual Civil, Direito Civil, Direito Empresarial e Direito Penal.

A rigor, somada às demais etapas do concurso (organizadas pelos tribunais correlatos), as questões, no procedimento de habilitação, visam privilegiar o raciocínio do candidato, sua aptidão na resolução de problemas e, como foi mencionado anteriormente, sua real vocação para a judicatura. Dito isso, pode-se afirmar que o Enam não se resume em mais uma etapa do processo seletivo. Pelo contrário, trata-se de uma forma de avaliação com ênfase, tanto na formação prática, quanto na formação humanística interdisciplinar, nos quais os conceitos como justiça, direito, moral, ética, entre outros, ganham especial destaque.

Pautado em objetivos multifacetados e profundos, que visam fomentar uma cultura jurídica que valorize o mérito e a diversidade, o Enam tem objetivos laterais, dentre os quais aponta-se: i) uniformização e excelência; ii) meritocracia e transparência; iii) diversidade e representatividade; e iv) racionalização dos recursos.

O primeiro objetivo – uniformização e excelência – visa ao estabelecimento de um padrão uniforme de avaliação que transcenda as fronteiras estaduais e institucionais locais, assegurando que todos os candidatos sejam avaliados sob os mesmos critérios de excelência, contribuindo para que magistradas e magistrados atuem, nacionalmente, de forma mais integrada e coerente. É este o ideário do constituinte originário que, ao criar o Superior Tribunal de Justiça (STJ) como um dos pilares da cidadania, teve a sensibilidade de prever mecanismos pelos quais fosse prestada a mesma tutela jurisdicional aos cidadãos brasileiros, independente do estado em que tenha estabelecido domicílio.

O segundo objetivo – meritocracia e transparência – pressupõe um processo seletivo baseado no mérito, capaz de eliminar as discrepâncias e os favorecimentos que possam advir de procedimentos seletivos locais, tais como aqueles apontados por Barroso. 

O terceiro – diversidade e representatividade – refere-se ao intuito de atingir um quadro de magistrados que espelhe a diversidade sociocultural do Brasil. Ao promover a igualdade de oportunidades, espera-se que mais candidatos tenham acesso à magistratura, enriquecendo o Judiciário com perspectivas variadas e mais representativas da sociedade brasileira. Para tanto, são adotadas ferramentas de seleção com foco em uma abordagem inclusiva, com condições adequadas para que candidatos negros, indígenas e pessoas com deficiência tenham suas particularidades reconhecidas e respeitadas durante o processo de avaliação.

Por fim, mas não menos importante, o quarto objetivo: racionalização dos recursos. A centralização da fase inicial de seleção em um exame nacional – sim, espera-se que, em um futuro próximo, concursos locais substituam a fase objetiva pela fase de habilitação nacional – representa, para um futuro próximo, uma otimização dos recursos financeiros e humanos envolvidos nos certames para a magistratura nacional. A economia gerada, por óbvio, pode ser redirecionada para outras áreas críticas, potencializando o desenvolvimento e a capacitação contínua dos magistrados.

Previsto para acontecer ao menos uma vez por ano, o exame é planejado para ser acessível em todas as capitais estaduais, garantindo que candidatos de todo o país possam participar sem a necessidade de deslocamentos onerosos. A aprovação do habilitado tem validade de dois anos, prorrogável por igual período, assegurando que o candidato tenha um amplo intervalo de tempo para se inscrever em concursos específicos da magistratura, conforme sua preparação e planejamento pessoal.

Ultrapassadas essas questões relacionadas ao processo de habilitação, passo a me dedicar a dois pontos sensíveis ao tema: i) competência do CNJ para a criação do Enam e sua consequente constitucionalidade; e ii) legitimidade da Enfam para atuar como organizadora do certame. 

Nos termos do art. 103-B da Constituição Federal, notadamente em seu parágrafo 4o, inciso I, o CNJ tem a competência de zelar pela autonomia do Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares dentro do âmbito de sua competência administrativa, a fim de garantir a eficiência e a uniformidade do Poder Judiciário. 

Soma-se a ele, o art. 93, I, e o art. 96, I, e, da CF. Enquanto o primeiro consigna que o ingresso na magistratura brasileira ocorre mediante concurso público de provas e títulos, observados os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência; o segundo confere aos tribunais a competência para promover concursos.

A competência conferida aos tribunais locais, ao fim e ao cabo, culminou com a multiplicidade de normas e procedimentos distintos para realização de concursos para ingresso na magistratura. Disso decorreram inúmeras impugnações na esfera administrativa e/ou jurisdicional que retardavam e comprometiam os certames.

No uso de suas atribuições regulatórias nacionais, dada a necessidade de editar normas destinadas a regulamentar e a uniformizar o procedimento e os critérios relacionados ao concurso de ingresso na carreira da magistratura do Poder Judiciário nacional, o CNJ editou a Resolução no 75/2009. A rigor, a citada resolução em nada inovou no mundo jurídico. Apenas normatizou o que já estava previsto no texto constitucional: “ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica […]”. (art. 93, inciso I, CF de 1988).

O mesmo raciocínio merece ser atribuído ao Enam. Enquanto etapa de habilitação, ainda que prévia, compreende uma das fases de avaliação do candidato, não se consubstanciando-se, pois, como o requisito de ingresso na carreira da magistratura (esse, sim, com necessário assento constitucional).

Tendo essas considerações como norte, não só é crível aferir a competência regulatória conferida ao CNJ para a criação do Enam, mas também a constitucionalidade da previsão de uma etapa nacional de habilitação dela advinda.

E o que dizer da legitimidade da Enfam para atuar como organizadora do certame? 

A implementação do Enam não apenas reconfigura o processo seletivo para a magistratura brasileira, mas também serve como um vetor, não só para Enfam, mas para todas as escolas judiciais, na concepção de suas atividades-fins, qual seja, a promoção da formação inicial e o aperfeiçoamento continuado dos magistrados. 

Pode-se concluir, pois, que a condução do processo de habilitação pela Enfam, em colaboração com a Enamat, se justifica pelas próprias atribuições constitucionais mencionadas. Soma-se a isso, o fato de o certame consubstanciar-se em uma valiosa fonte de dados aptos a contribuir para a melhoria contínua dos programas de aperfeiçoamento dessas instituições.

Sobre esses programas, no âmbito da Enfam, destacam-se a formação inicial do magistrado recém-ingresso na carreira e a formação continuada, tendo esse último o objetivo de assegurar atualização constante das magistradas e dos magistrados, não só no que concerne às mudanças legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, mas também às novas técnicas judiciárias. 

A formação e o aperfeiçoamento continuado, doravante, com o apoio dos dados extraídos do Enam, poderão contar com uma base sólida para o desenvolvimento de uma magistratura dinâmica, ética e tecnicamente preparada para enfrentar os desafios do século XXI. 

Por fim, não poderia deixar de destacar os importantes ganhos periféricos da criação de uma habilitação nacional para ingresso na magistratura.

Uma vez inscritos os candidatos, tem-se uma eficiente coleta de dados, que podem subsidiar políticas públicas voltadas à magistratura. Informações sobre a distribuição geográfica dos candidatos, gênero, auto identificação racial, entre outros, ainda que não identificáveis, podem ser extremamente valiosas para o desenvolvimento de estratégias que visem melhorar a seleção e a formação dos magistrados em todo o país.

O Exame Nacional da Magistratura representa um avanço significativo na seleção dos futuros magistrados brasileiros. É mais uma ferramenta que demonstra o compromisso de instituições da República em prol da busca pela excelência do padrão de justiça no país. 

Em última análise, a implementação de um processo nacional de habilitação desafia o sistema a evoluir. Mais do que um mecanismo de avaliação, o Enam constitui-se como um compromisso firme com a evolução de uma Justiça mais justa, equitativa e eficaz, verdadeiramente à altura dos desafios impostos pela sociedade moderna.

Notas___________________________

1 Aprovada pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça, a Resolução n. 531, de 14 de novembro de 2023, criou o Exame Nacional da Magistratura – Enam

2 Em 2011, em palestra na XXI Conferência Nacional dos Advogados, Barroso defendeu a adoção de uma seleção prévia “que minimizaria os riscos de manipulação e favorecimento por oligarquias judiciárias locais”. Naquela ocasião, ele também apontou o exame nacional entre as medidas a serem adotadas para promover a proficiência do magistrado. Em 2012, foi dele a iniciativa que redundou na vedação às entrevistas secretas em concursos para juiz. Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, argumentou que o que tem de valer na seleção é o mérito. “Ninguém tem o direito de escolher subjetivamente.” Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-set-22/tj-sp-novas-entrevistas-ressentimentos-acredita-barroso/. Acesso em: 13 mar. 2024.

3 As normas para realização do ENAM estão previstas na Resolução Enfam n. 7, de 7 de dezembro de 2023.

4 Vide o art. 4o-A § 4o: O Exame Nacional da Magistratura tem caráter apenas eliminatório, não classificatório, sendo considerados aprovados todos os candidatos em ampla concorrência que obtiverem ao menos 70% de acertos na prova objetiva, ou, no caso de candidatos autodeclarados pessoas com deficiência, negros ou indígenas, ao menos 50% de acertos. (Resolução CNJ n. 75/2009, redação dada pela Resolução n. 546, de 22/2/2024).

5 Requisitos específicos para magistratura: ser bacharel em Direito; comprovar três anos de atividade jurídica depois de graduado, atender aos requisitos de investigações relativas ao aspecto moral e social, bem como o exame de sanidade física e mental; aprovação em concurso público de provas e títulos.

6 Na formação inicial oferecida pela Enfam aos novos magistrados, é projetado, sobretudo, contribuir com as habilidades práticas e competências interpessoais essenciais ao exercício judicante. Tanto assim o é que compreende módulos, entre os quais destacam-se: i) ética e deontologia, dedicado aos dilemas éticos comuns, promove uma reflexão profunda sobre o papel social do magistrado, ii) treinamento em técnicas de decisão, cujo principal papel é desenvolver a capacidade de análise crítica, argumentação jurídica e tomada de decisões equitativas.

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